
CARTA ENCÍCLICA
EVANGELIUM VITAE
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS
AOS RELIGIOSOS E RELIGIOSAS
AOS FIÉIS LEIGOS
E A TODAS AS PESSOAS DE BOA VONTADE
SOBRE O VALOR E A INVIOLABILIDADE
DA VIDA HUMANA

O Divino
Espírito Santo.
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INTRODUÇÃO
1. O
Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus.
Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e
corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os
tempos e culturas.
Na
aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o
nascimento de um menino: « Anuncio-vos uma grande alegria,
que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David,
nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2,
10-11). O motivo imediato que faz irradiar esta « grande
alegria » é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no
Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o
nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela
fundamento e plenitude da alegria por cada criança que nasce
(cf. Jo 16,
21).
Ao
apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus
diz: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância
» (Jo 10,
10). Ele fala daquela vida « nova » e « eterna » que
consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é
gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito
Santificador. Mas é precisamente em tal « vida » que todos
os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno
significado.
O
valor incomparável da pessoa humana
2. O
homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito
para além das dimensões da sua existência terrena, porque
consiste na participação da própria vida de Deus.
A
sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e
o valor
precioso da
vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito,
a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte
integrante do processo global e unitário da existência
humana: um processo que, para além de toda a expectativa e
merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo
dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na
eternidade (cf. 1
Jo 3, 1-2).
Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural
sublinha a relatividade da
vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não
é realidade « última », mas « penúltima »; trata-se, em todo
o caso, de uma realidade
sagrada que
nos é confiada para a guardarmos com sentido de
responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de
nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A
Igreja sabe que este Evangelho
da vida, recebido
do seu Senhor, 1 encontra um eco profundo e persuasivo no
coração de cada pessoa, crente e até não crente, porque se
ele supera infinitamente as suas aspirações, também lhes
corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre
dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto
à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto
influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural
inscrita no coração (cf. Rm 2,
14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início
até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano
tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário.
Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a
convivência humana e a própria comunidade política.
De
modo particular, devem defender e promover este direito os
crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa,
recordada pelo Concílio Vaticano II: « Pela sua encarnação,
Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ».
2 De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à
humanidade não só o amor infinito de Deus que « amou de tal
modo o mundo que lhe deu o seu Filho único » (Jo 3,
16), mas também o valor
incomparável de cada pessoa humana.
A
Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção,
descobre com assombro incessante 3 este valor, e sente-se
chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este «
evangelho », fonte de esperança invencível e de alegria
verdadeira para cada época da história. O
Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da
dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e
indivisível Evangelho.
É por
este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro
e fundamental caminho da Igreja. 4
As
novas ameaças à vida humana
3.
Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se
fez carne (cf. Jo 1,
14), cada homem está confiado à solicitude materna da
Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do
homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da
Igreja, é impossível não a tocar no centro da sua fé na
encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a
interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho
da vida pelo
mundo inteiro a toda a criatura (cf. Mc 16,
15).
Hoje,
este anúncio torna-se particularmente urgente pela
impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à
vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e
indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome,
das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar
outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já o
Concílio Vaticano II, numa página de dramática actualidade,
deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a
vida humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as
palavras da Assembleia Conciliar, uma vez mais e com
idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a
certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda a
consciência recta: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja
toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e
suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da
pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e
mentais e as tentativas para violentar as próprias
consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa
humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições
degradantes de trabalho, em que os operários são tratados
como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e
responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são
infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização
humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os
que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra
devida ao Criador ». 5
4.
Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir,
tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo
progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de
atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delínea e
consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes
contra a vida um aspecto
inédito e — se é possível — ainda mais iníquo, suscitando
novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião
pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos
direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto,
pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria
autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta
liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços
de Saúde.
Ora,
tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de
considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de
as legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos
próprios princípios basilares das suas Constituições, terem
consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena
legitimidade de tais acções contra a vida, é conjuntamente
sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave
derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimamente
criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se
pouco a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina
que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida
humana, em alguns dos seus sectores vai-se prestando em
escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa,
e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma
e humilha a dignidade de quantos a exercem. Em semelhante
contexto cultural e legal, os graves problemas demográficos,
sociais ou familiares — que incidem sobre numerosos povos do
mundo e exigem a atenção responsável e operante das
comunidades nacionais e internacionais —, encontram-se
também sujeitos a soluções falsas e ilusórias, em contraste
com a verdade e o bem das pessoas e das nações.
O
resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e
preocupante o fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas
nascentes ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o
facto de à própria consciência, ofuscada por tão vastos
condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a
distinção entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca
o fundamental valor da vida humana.
Em
comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao
problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi
dedicado o Consistório
Extraordinário dos Cardeais, realizado
em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e
profundo debate do problema e dos desafios postos à família
humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã,
os Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse,
com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida
humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias
actuais e dos atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta
pessoal a
cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de
colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à
elaboração de um específico documento. 6 Agradeço
profundamente a todos os Bispos que responderam,
fornecendo-me preciosas informações, sugestões e
propostas. Deram também assim testemunho da sua participação
concorde e convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja
acerca do Evangelho
da vida.
Nessa
mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da
celebração do centenário da EncíclicaRerum novarum, chamava
a atenção de todos para esta singular analogia: « Como há um
século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe
operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa,
proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do
trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas
é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que
deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é
sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de
quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus
direitos humanos ». 7
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande
multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em
particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do
século passado, não fora consentido à Igreja calar perante
as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar
hoje, quando às injustiças sociais do passado — infelizmente
ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do
mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se
disfarçadas em elementos de progresso com vista à
organização de uma nova ordem mundial.
A
presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de
cada país do mundo, quer ser umareafirmação precisa e
firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e,
conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a
todos e cada um:respeita, defende, ama e serve a vida,
cada vida humana! Unicamente
por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira
liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja!
Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo
bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade
inteira!
6. Em
profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por
sincera amizade para com todos, quero meditar
de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara
luz que ilumina as consciências, esplendor de verdade que
cura o olhar ofuscado, fonte inexaurível de constância e
coragem para enfrentar os desafios sempre novos que
encontramos no nosso caminho.
Tendo
no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da
Família, e quase completando idealmente a Carta que
dirigi « a cada família concreta de cada região da terra »,
8 olho com renovada confiança para todas as comunidades
domésticas e faço votos por que renasça ou se reforce, em
todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a
família, para que também hoje — mesmo no meio de numerosas
dificuldades e graves ameaças — ela se conserve sempre,
segundo o desígnio de Deus, como « santuário da vida ». 9
A
todos os membros da Igreja, povo
da vida e pela vida, dirijo
o mais premente convite para que, juntos, possamos dar novos
sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por
que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova
cultura da vida humana, para a edificação de uma autêntica
civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM
AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
« Caim
levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o » (Gn 4,
8): na raiz da
violência contra a vida
7. «
Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá
nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência.
(...) Com efeito, Deus
criou o homem para a incorruptibilidade, e
fê- -lo à imagem da sua própria natureza. Por inveja do
demónio é que a
morte entrou no mundo e
prová-la-ão os que pertencem ao demónio » (Sab 1,
13-14; 2, 23-24).
O Evangelho
da vida, que
ressoa, logo ao princípio, com a criação do homem à imagem
de Deus para um destino de vida plena e perfeita (cf. Gn 2,
7; Sab 9,
2-3), vê-se contestado pela experiência dilacerante da morte
que entra no mundo, lançando
o espectro da falta de sentido sobre toda a existência do
homem.
A
morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3,
1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf.Gn 2,
17; 3, 17-19). E entra de modo violento, através
do assassínio de Abel por obra do seu irmão: «
Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o
irmão Abel e matou-o » (Gn4, 8).
Este
primeiro assassínio é apresentado, com singular eloquência,
numa página paradigmática do Livro do Génesis: página
transcrita cada dia, sem cessar e com degradante repetição,
no livro da história dos povos.
Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que,
apesar do seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se
apresenta riquíssima de ensinamentos.
« Abel
foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim
apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu
lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as
gorduras deles. O
Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta,
mas não olhou para Caim nem para a sua oferta.
Caim
ficou muito irritado e o rosto transtornou--se-lhe. O Senhor
disse a Caim: "Porque estás zangado e o teu rosto abatido?
Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se
procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a
espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para
ti, mas deves dominá-lo".
Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: "Vamos ao campo".
Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão
contra o irmão Abel e matou-o.
O
Senhor disse a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim
respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu
irmão?" O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do sangue do
teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito
sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o
sangue do teu irmão. Quando
a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás
vagabundo e fugitivo sobre a terra".
Caim
disse ao Senhor: "A minha culpa é grande demais para obter
perdão! Expulsas-me
hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face,
terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro
a encontrar-me matar-me-á".
O
Senhor respondeu: "Não, se alguém matar Caim, será castigado
sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de
nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim
afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de
Nod, ao oriente do Éden »(Gn 4,
2-16).
8.
Caim está « muito irritado » e tem o rosto « transtornado »,
porque « o Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a
sua oferta » (Gn 4,
4). O texto bíblico não revela o motivo pelo qual Deus
preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim; mas indica
claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não
interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela-o, recordando-lhe
a sua liberdade frente ao mal: o
homem não está de forma alguma predestinado para o mal.
Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força
maléfica do pecado que, como um animal feroz, se agacha à
porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa.
Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve
dominá-lo: « Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti,
mas deves dominá-lo » (Gn 4,
7).
Sobre
a advertência feita pelo Senhor, porém, levam
a melhor o ciúme e a ira, e
Caim atira-se contra o próprio irmão e mata-o. Como lemos no Catecismo
da Igreja Católica, «
a Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel por seu
irmão Caim, revela, desde os primórdios da história humana,
a presença no homem da cólera e da inveja, consequências do
pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante
». 10
O
irmão mata o irmão. Como
naquele primeiro fratricídio, também em cada homicídio é
violado oparentesco « espiritual » que
congrega os homens numa única grande família, 11 sendo todos
participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade
pessoal. E, não raro, resulta violado também o parentesco
« da carne e do sangue », quando,
por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do
relacionamento pais e filhos, como sucede com o aborto ou
quando, no mais vasto contexto familiar ou de parentela, é
encorajada ou provocada a eutanásia.
Na
raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma
cedência à « lógica » do maligno, isto
é, daquele que « foi assassino desde o princípio » (Jo 8,
44), como nos recorda o apóstolo João: « Porque esta é a
mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns
aos outros. Não seja como Caim que era do maligno, e matou o
seu irmão » (1 Jo 3,
11-12). Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da
história, é o triste testemunho de como o mal progride com
rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no
paraíso terreal segue-se a luta mortal do homem contra o
homem.
Depois
do crime, Deus
intervém para vingar a vítima. Frente
a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez
de se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à
pergunta com arrogância: « Não sei dele. Sou, porventura,
guarda do meu irmão? » (Gn 4,
9). « Não sei
dele »:com a mentira, Caim procura encobrir o crime.
Assim aconteceu frequentemente e continua a verificar-se
quando se servem das mais diversas ideologias para
justificar e mascarar os crimes mais atrozes contra a
pessoa. « Sou,
porventura, guarda do meu irmão? »: Caim
não quer pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela
responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam
espontaneamente ao pensamento as tendências actuais para
sonegar a responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de
que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade com
os membros mais débeis da sociedade — como são os idosos, os
doentes, os imigrantes, as crianças —, e a indiferença que
tantas vezes se regista nas relações entre os povos, mesmo
quando estão em jogo valores fundamentais como a
sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas
Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi
derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça
(cf. Gn 37,
26; Is 26,
21; Ez 24,
7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de «
pecados que bradam ao Céu », incluindo em primeiro lugar o
homicídio voluntário. 12 Para os hebreus, como para muitos
povos da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor «
o sangue é a vida » (Dt 12,
23), e a vida, sobretudo a humana, pertence unicamente a
Deus: por isso, quem
atenta contra a vida do homem, de algum modo atenta contra o
próprio Deus.
Caim é
amaldiçoado por Deus como também pela terra, que lhe
recusará os seus frutos (cf. Gn 4,
11-12). E é
punido: habitará
em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera
profundamente o ambiente da vida do homem. A terra, que era
o « jardim do Éden » (Gn 2,
15), lugar de abundância, de serenas relações interpessoais
e de amizade com Deus, torna-se o « país de Nod » (Gn 4,
16), lugar de « miséria », de solidão e de afastamento de
Deus. Caim será « fugitivo e vagabundo pela terra » (Gn 4,
14): dúvida e instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, «
marcou 1 com um sinal, a
fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar » (Gn 4,
15): põe-lhe um sinal, cujo objectivo não é condená-lo à
abominação dos outros homens, mas protegê-lo e defendê-lo
daqueles que o quiserem matar, ainda que seja para vingar a
morte de Abel. Nem
sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e
o próprio Deus Se constitui seu garante. E é precisamente
aqui que se manifesta omistério paradoxal da justiça
misericordiosa de Deus, como
escreve Santo Ambrósio: « Visto que tinha sido cometido um
fratricídio — ou seja, o maior dos crimes —, no momento em
que se introduziu o pecado, teve imediatamente de ser
ampliada a lei da misericórdia divina; para que, caso o
castigo atingisse imediatamente o culpado, não sucedesse que
os homens, ao punirem, não usassem de qualquer tolerância
nem mansidão, mas entregassem imediatamente ao castigo os
culpados. (...) Deus repeliu Caim da sua presença e,
renegado pelos seus pais, como que o desterrou para o exílio
de uma habitação separada, pelo facto de ter passado da
mansidão humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer
punir o homicida com um homicídio, porque prefere o
arrependimento do pecador à sua morte ». 13
« Que
fizeste? » (Gn 4,
10): o eclipse
do valor da vida
10. O
Senhor disse a Caim: « Que fizeste? A voz do sangue do teu
irmão clama da terra até Mim » (Gn 4,
10). A voz do
sangue derramado pelos homens não cessa de clamar, de
geração em geração, assumindo tons e acentos sempre novos e
diversos.
A
pergunta do Senhor « que fizeste? », à qual Caim não se pode
esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que
tome consciência da amplitude e gravidade dos atentados à
vida que continuam a registar-se na história da humanidade,
para que vá à procura das múltiplas causas que os geram e
alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema seriedade
sobre as consequências que derivam desses mesmos atentados
para a existência das pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são
agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos
homens que, não raro, lhes poderiam dar remédio; outras, ao
contrário, são fruto de situações de violência, de ódio, de
interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem
outros homens com homicídios, guerras, massacres,
genocídios.
Como
não pensar na violência causada à vida de milhões de seres
humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à
subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das
riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na
violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao
escandaloso comércio de armas, que favorece o torvelinho de
tantos conflitos armados que ensanguentam o mundo? Ou então
na sementeira de morte que se provoca com a imprudente
alteração dos equilíbrios ecológicos, com a criminosa
difusão da droga, ou com a promoção do uso da sexualidade
segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis,
acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível
registar de modo completo a vasta gama das ameaças à vida
humana, tantas são as formas, abertas ou camufladas, de que
se revestem no nosso tempo!
11.
Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular,
sobre outro
género de atentados, relativos
à vida nascente e terminal, que apresentam novas
características em relação ao passado e levantam problemas
de singular gravidade: é
que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o
carácter de « crimes » para assumir, paradoxalmente, o
carácter de « direitos », a ponto de se pretender um
verdadeiro e próprio reconhecimento
legal da parte do Estado e a consequente execução gratuita
por intermédio dos profissionais da saúde. Tais
atentados ferem a vida humana em situações de máxima
fragilidade, quando se acha privada de qualquer capacidade
de defesa. Mais grave ainda é o facto de serem consumados,
em grande parte, mesmo no seio e por obra da família que
está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser «
santuário da vida ».
Como
se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em
consideração diversos factores. Como pano de fundo, existe
uma crise profunda da cultura, que gera cepticismo sobre os
próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada
vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem,
dos seus direitos e dos seus deveres. A isto, vêm juntar-se
as mais diversas dificuldades existenciais e interpessoais,
agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde
frequentemente as pessoas, os casais, as famílias são
deixadas sozinhas a braços com os seus problemas. Não faltam
situações de particular pobreza, angústia e exasperação,
onde a luta pela sobrevivência, a dor nos limites do
suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas
que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao
heroísmo as opções de defesa e promoção da vida.
Tudo
isto explica — pelo menos em parte — como possa o valor da
vida sofrer hoje uma espécie de « eclipse », apesar da
consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e
intocável; e comprova-o o próprio fenómeno de se procurar
encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal
com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do
facto de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa
humana concreta.
12.
Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática
social actual podem, de certo modo, explicar o clima de
difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar a
responsabilidade subjectiva no indivíduo, não é menos
verdade que estamos perante uma realidade mais vasta que se
pode considerar como verdadeira e própria estrutura
de pecado, caracterizada
pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos
casos se configura como verdadeira « cultura de morte ». É
activamente promovida por fortes correntes culturais,
económicas e políticas, portadoras de uma concepção
eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo
sentido, falar de uma guerra
dos poderosos contra os débeis: a
vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é
reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e,
consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo
aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais
simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o
bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais
avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual
defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim
uma espécie de «
conjura contra a vida ». Esta
não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações
pessoais, familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para
além até atingir e subverter, a nível mundial, as relações
entre os povos e os Estados.
13.
Para facilitar a difusão do aborto, foram
investidas — e continuam a sê-lo — somas enormes, destinadas
à criação de fármacos que tornem possível a morte do feto no
ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do
médico. A própria investigação científica, neste âmbito,
parece quase exclusivamente preocupada em obter produtos
cada vez mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo
tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma de
controlo e responsabilidade social.
Afirma-se frequentemente que a contracepção, tornada
segura e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o
aborto. E depois acusa-se a Igreja Católica de, na
realidade, favorecer o aborto, porque continua
obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção.
Bem
vista, porém, a objecção é falaciosa. De facto, pode
acontecer que muitos recorram aos contraceptivos com a
intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas
os pseudo-valores inerentes à « mentalidade contraceptiva »
— muito diversa do exercício responsável da paternidade e
maternidade, actuada no respeito pela verdade plena do acto
conjugal — são tais que tornam ainda mais forte essa
tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não
desejada. De facto, a cultura pro-aborto aparece sobretudo
desenvolvida nos mesmos ambientes que recusam o ensinamento
da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a contracepção e
o aborto são males
especificamente diversos do
ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do
acto sexual enquanto expressão própria do amor conjugal, o
outro destrói a vida de um ser humano; a primeira opõe-se à
virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe-se à
virtude da justiça e viola directamente o preceito divino «
não matarás ».
Mas,
apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem,
com muita frequência, intimamente relacionados como frutos
da mesma planta. É verdade que não faltam casos onde, à
contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de
diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não
podem nunca exonerar do esforço de observar plenamente a lei
de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas
afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e
desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito
egoísta da liberdade que vê na procriação um obstáculo ao
desenvolvimento da própria personalidade. A vida que poderia
nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se
há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução
possível diante de uma contracepção falhada.
Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que
existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da
contracepção e do aborto, como o demonstra, de modo
alarmante, a produção de fármacos, dispositivos
intra-uterinos e preservativos, os quais, distribuídos com a
mesma facilidade dos contraceptivos, actuam na prática como
abortivos nos primeiros dias de desenvolvimento da vida do
novo ser humano.
14.
Também as várias técnicas
de reprodução artificial, que
pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são
praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta a
novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem
moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do
contexto integralmente humano do acto conjugal, 14 essas
técnicas registam altas percentagens de insucesso: este diz
respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao
desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de
morte em tempos geralmente muito breves. Além disso, são
produzidos às vezes embriões em número superior ao
necessário para a implantação no útero da mulher e esses,
chamados « embriões supranumerários », são depois suprimidos
ou utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso
científico ou médico, na realidade reduzem a vida humana a
simples « material biológico », de que se pode livremente
dispor.
Os diagnósticos
pré-natais, que
não apresentam dificuldades morais quando feitos para
individuar a eventualidade de curas necessárias à criança
ainda no seio materno, tornam-se, com muita frequência,
ocasião para propor e solicitar o aborto. É o aborto
eugénico, cuja legitimação, na opinião pública, nasce de uma
mentalidade — julgada, erradamente, coerente com as
exigências « terapêuticas » — que acolhe a vida apenas sob
certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a
enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados
ordinários mais elementares, mesmo até a alimentação, a
crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E
o cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais
desconcertante com as propostas — avançadas aqui e além —
para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar até
o infanticídio, retornando
assim a um estado de barbárie que se esperava superado para
sempre.
15.
Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes
incuráveis e
os doentes
terminais, num
contexto social e cultural que, tornando mais difícil
enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação
de resolver o problema do sofrimento eliminando-o pela raiz, com
a antecipação da morte para o momento considerado mais
oportuno.
Para
tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de natureza
diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível
saída. Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de
angústia, exasperação, ou até desespero, provocado por uma
experiência de dor intensa e prolongada. Vêem-se, assim,
duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já
abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um
lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais
eficazes da assistência médica e social, corre o risco de se
sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado,
naqueles que lhe estão afectivamente ligados, pode gerar-se
um sentimento de compreensível, ainda que mal-entendida,
compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera
cultural que não vê qualquer significado nem valor no
sofrimento, antes considera-o como o mal por excelência, que
se há-de eliminar a todo o custo; isto verifica- -se
especialmente quando não se possui uma visão religiosa que
ajude a decifrar positivamente o mistério da dor.
Mas,
no conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir
também uma espécie de atitude prometéica do homem que, desse
modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte para
decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e
esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer
perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica
expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora
mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até
legalizada. Para além do motivo de presunta compaixão diante
da dor do paciente, às vezes pretende-se justificar a
eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é, para
evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a
sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos
defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos
idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes
terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas
mais astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia,
como são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando,
para aumentar a disponibilidade de material para
transplantes, se procedesse à extracção dos órgãos sem
respeitar os critérios objectivos e adequados de
certificação da morte do dador.
16.
Outro motivo actual, que frequentemente é acompanhado por
ameaças e atentados à vida, é ofenómeno demográfico. Este
reveste aspectos diversos, nas várias partes do mundo: nos
países ricos e desenvolvidos, regista-se uma preocupante
diminuição ou queda da natalidade; os países pobres, ao
contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento
da população, dificilmente suportável num contexto de menor
progresso económico e social, ou até de grave
subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países
pobres, verifica-se, a nível internacional, a falta de
intervenções globais — sérias políticas familiares e
sociais, programas de crescimento cultural e de justa
produção e distribuição dos recursos — enquanto se continuam
a actuar políticas anti-natalistas.
Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a
esterilização e o aborto entre as causas que contribuem para
determinar as situações de forte queda da natalidade, pode
ser fácil a tentação de recorrer aos mesmos métodos e
atentados contra a vida, nas situações de « explosão
demográfica ».
O
antigo Faraó, sentindo como um íncubo a presença e a
multiplicação dos filhos de Israel, sujeitou-os a todo o
tipo de opressão e ordenou que fossem mortas todas as
crianças do sexo masculino (cf.Ex 1,
7-22). Do mesmo modo se comportam hoje bastantes poderosos
da terra.
Também
estes vêem como um íncubo o crescimento demográfico em acto,
e temem que os povos mais prolíferos e mais pobres
representem uma ameaça para o bem-estar e a tranquilidade
dos seus países. Consequentemente, em vez de procurarem
enfrentar e resolver estes graves problemas dentro do
respeito da dignidade das pessoas e das famílias e do
inviolável direito de cada homem à vida, preferem promover e
impor, por qualquer meio, um maciço planeamento da
natalidade. As próprias ajudas económicas, que se dizem
dispostos a dar, ficam injustamente condicionadas à
aceitação desta política anti-natalista.
17. A
humanidade de hoje oferece-nos um espectáculo
verdadeiramente alarmante, se pensarmos não só aos diversos
âmbitos em que se realizam os atentados à vida, mas também à
singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo
e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social,
pelo frequente reconhecimento legal, pelo envolvimento de
uma parte dos profissionais da saúde.
Como
senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia
Mundial da Juventude, « com o tempo, as ameaças contra a
vida não diminuíram. Elas, ao contrário, assumem dimensões
enormes. Não se trata apenas de ameaças vindas do exterior,
de forças da natureza ou dos « Cains » que assassinam os «
Abéis »; não, trata-se de ameaças
programadas de maneira científica e sistemática. O
século XX ficará considerado uma época de ataques maciços
contra a vida, uma série infindável de guerras e um massacre
permanente de vidas humanas inocentes. Os falsos profetas e
os falsos mestres conheceram o maior sucesso possível ». 15
Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá
assumir formas persuasivas em nome até da solidariedade, a
verdade é que estamos perante uma objectiva «
conjura contra a vida » que
vê também implicadas Instituições Internacionais, empenhadas
a encorajar e programar verdadeiras e próprias campanhas
para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto.
Não se pode negar, enfim, que os mass-media são
frequentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da
opinião pública aquela cultura que apresenta o recurso à
contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria
eutanásia como sinal do progresso e conquista da liberdade,
enquanto descrevem como inimigas da liberdade e do progresso
as posições incondicionalmente a favor da vida.
« Sou,
porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4,
9): uma noção
perversa de liberdade
18. O
panorama descrito requer ser conhecido não somente nos
fenómenos de morte que o caracterizam, mas também nas múltiplas
causas que o
determinam. A pergunta do Senhor « que fizeste? » (Gn 4,
10) quase parece um convite dirigido a Caim para que,
ultrapassando a materialidade do gesto homicida, veja toda a
gravidade nas motivações que
estão na sua origem e nas consequências que
dele derivam.
As
opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis
ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de
carência total de perspectivas económicas, de depressão e de
angústia pelo futuro. Estas circunstâncias podem atenuar,
mesmo até notavelmente, a responsabilidade subjectiva e,
consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais
opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o problema
estende-se muito para além do reconhecimento, sempre
necessário, destas situações pessoais. Põe-se também no
plano cultural, social e político, onde apresenta o seu
aspecto mais subversivo e perturbador na tendência, cada vez
mais largamente compartilhada, de interpretar os mencionados
crimes contra a vida como legítimas
expressões da liberdade individual, que hão-de ser
reconhecidas e protegidas como verdadeiros e próprios
direitos.
Chega
assim a uma viragem de trágicas consequências, um longo
processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o
conceito de « direitos humanos » — como direitos inerentes a
cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e
legislação dos Estados —, incorre hoje numa estranha
contradição: precisamente
numa época em que se proclamam solenemente os direitos
invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da
vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e
espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos
da existência, como são o nascer e o morrer.
Por um
lado, as várias declarações dos direitos do homem e as
múltiplas iniciativas que nelas se inspiram, indicam a
consolidação a nível mundial de uma sensibilidade moral mais
diligente em reconhecer o valor e a dignidade de cada ser
humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça,
nacionalidade, religião, opinião política, estrato social.
Por
outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se,
infelizmente nos factos, a sua trágica negação. Esta é ainda
mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente
porque se realiza numa sociedade que faz da afirmação e
tutela dos direitos humanos o seu objectivo principal e,
conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo
essas repetidas afirmações de princípio com a contínua
multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida
humana? Como conciliar estas declarações com a recusa do
mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele que acaba
de ser concebido? Estes atentados encaminham-se exactamente
na direcção contrária à do respeito pela vida e representam
uma ameaça
frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É
uma ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o
próprio significado da convivência democrática: de
sociedade de « con-viventes », as nossas cidades correm o
risco de passar a sociedade de excluídos, marginalizados,
irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se alarga ao
horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos
direitos das pessoas e dos povos, verificada em altas
reuniões internacionais, se reduz a um estéril exercício
retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países
ricos que fecham aos países pobres o acesso ao
desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de
procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não
é de pôr em discussão os próprios modelos económicos,
adoptados pelos Estados frequentemente também por pressões e
condicionamentos de carácter internacional, que geram e
alimentam situações de injustiça e violência, nas quais a
vida humana de populações inteiras fica degradada e
espezinhada?
19.
Onde estão as raízes
de uma contradição tão paradoxal?
Podemo-las individuar em avaliações globais de ordem
cultural e moral, a começar daquela mentalidade que, exasperando
e até deformando o conceito de subjectividade, só
reconhece como titular de direitos quem se apresente com
plena ou, pelo menos, incipiente autonomia e esteja fora da
condição de total dependência dos outros. Mas, como
conciliar tal impostação com aexaltação do homem enquanto
ser « não-disponível »? A
teoria dos direitos humanos funda-se precisamente na
consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e
das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém.
Deve-se acenar ainda àquela lógica que tende aidentificar
a dignidade pessoal com a capacidade de comunicação verbal e
explícita e,
em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais
pressupostos, não há espaço no mundo para quem, como o
nascituro ou o doente terminal, é um sujeito estruturalmente
débil, parece totalmente à mercê de outras pessoas e
radicalmente dependente delas, e sabe comunicar apenas
mediante a linguagem muda de uma profunda simbiose de
afectos. Assim a força torna-se o critério de decisão e de
acção, nas relações interpessoais e na convivência social.
Mas isto é precisamente o contrário daquilo que,
historicamente, quis afirmar o Estado de direito, como
comunidade onde as « razões da força » são substituídas pela
« força da razão ».
A
outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre
a solene afirmação dos direitos do homem e a sua trágica
negação na prática, residem numa concepção
da liberdade que
exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a
solidariedade, o pleno acolhimento e serviço do outro. Se é
certo que, por vezes, a supressão da vida nascente ou
terminal aparece também matizada com um sentido equivocado
de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que
tal cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção
da liberdade totalmente individualista que acaba por ser a
liberdade dos « mais fortes » contra os débeis, destinados a
sucumbir.
Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta
de Caim à pergunta do Senhor « onde está Abel, teu irmão? »:
« Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4,
9). Sim, todo o homem é « guarda do seu irmão », porque Deus
confia o homem ao homem. E é tendo em vista também tal
entrega que Deus dá a cada homem a liberdade, que possui uma dimensão
relacional essencial. Trata-se
de um grande dom do Criador, quando colocada como deve ser
ao serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de
si e o acolhimento do outro; quando, pelo contrário, a
liberdade é absolutizada em chave individualista, fica
esvaziada do seu conteúdo originário e contestada na sua
própria vocação e dignidade.
Mas há
um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade
renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se à
eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar
a sua ligação
constitutiva com a verdade. Todas
as vezes que a razão humana, querendo emancipar-se de toda e
qualquer tradição e autoridade, se fecha até às evidências
primárias de uma verdade objectiva e comum, fundamento da
vida pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única
e indiscutível referência para as próprias decisões, não já
a verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjectiva e
volúvel opinião ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e
o seu capricho.
20.
Nesta concepção da liberdade, a
convivência social fica profundamente deformada. Se
a promoção do próprio eu é vista em termos de autonomia
absoluta, inevitavelmente chega-se à negação do outro, visto
como um inimigo de quem defender-se. Deste modo, a sociedade
torna-se um conjunto de indivíduos, colocados uns ao lado
dos outros mas sem laços recíprocos: cada um quer afirmar-se
independentemente do outro, mais, quer fazer prevalecer os
seus interesses. Todavia, na presença de análogos interesses
da parte do outro, terá de se render a procurar qualquer
forma de compromisso, se se quer que, na sociedade, seja
garantido a cada um o máximo de liberdade possível. Deste
modo, diminui toda a referência a valores comuns e a uma
verdade absoluta para todos: a vida social aventura-se pelas
areias movediças de um relativismo total. Então, tudo
é convencional, tudo é negociável: inclusivamente
o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida.
É
aquilo que realmente acontece, mesmo no âmbito mais
especificamente político e estatal: o primordial e
inalienável direito à vida é posto em discussão ou negado
com base num voto parlamentar ou na vontade de uma parte —
mesmo que seja maioritária — da população. É o resultado
nefasto de um relativismo que reina incontestado: o próprio
« direito » deixa de o ser, porque já não está solidamente
fundado sobre a inviolável dignidade da pessoa, mas fica
sujeito à vontade do mais forte. Deste modo e para
descrédito das suas regras, a democracia caminha pela
estrada de um substancial totalitarismo. O Estado deixa de
ser a « casa comum », onde todos podem viver segundo
princípios de substancial igualdade, e transforma-se num Estado
tirano, que
presume de poder dispor da vida dos mais débeis e indefesos,
desde a criança ainda não nascida até ao idoso, em nome de
uma utilidade pública que, na realidade, não é senão o
interesse de alguns.
Tudo
parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo
menos quando as leis, que permitem o aborto e a eutanásia,
são votadas segundo as chamadas regras democráticas. Na
verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica aparência
de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente
tal apenas quando reconhece e tutela a dignidade de toda a
pessoa humana, é
atraiçoado nas suas próprias bases: «
Como é possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa
humana, quando se permite matar a mais débil e a mais
inocente? Em nome de qual justiça se realiza a mais injusta
das discriminações entre as pessoas, declarando algumas
dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta dignidade é
negada? ». 16 Quando se verificam tais condições, estão já
desencadeados aqueles mecanismos que levam à dissolução da
convivência humana autêntica e à desagregação da própria
realidade estatal.
Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à
eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à
liberdade humana um significado
perverso e iníquo: o
significado de um poder
absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas
isto é a morte da verdadeira liberdade: « Em verdade, em
verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é escravo
do pecado » (Jo 8,
34).
«
Obrigado a ocultar-me longe da tua face » (Gn 4,
14): o eclipse
do sentido de Deus e do homem
21.
Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a
« cultura da vida » e a « cultura da morte », não podemos
deter-nos na noção perversa de liberdade acima referida. É
necessário chegar ao coração do drama vivido pelo homem
contemporâneo: o
eclipse do sentido de Deus e do homem, típico
de um contexto social e cultural dominado pelo secularismo
que, com os seus tentáculos invasivos, não deixa às vezes de
pôr à prova as próprias comunidades cristãs. Quem se deixa
contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de
um terrível círculo vicioso:perdendo o sentido de Deus,
tende-se a perder também o sentido do homem, da
sua dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática
violação da lei moral, especialmente na grave matéria do
respeito da vida humana e da sua dignidade, produz uma
espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar
a presença vivificante e salvífica de Deus.
Podemos, mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de
Abel provocada pelo seu irmão. Depois da maldição infligida
por Deus a Caim, este dirige-se ao Senhor dizendo: « A minha
culpa é grande demais para obter perdão. Expulsas-me hoje
desta terra;obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei
de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a
encontrar-me matar-me-á » (Gn 4,
13-14).
Caim
pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e
que o seu destino inevitável será « ocultar-se longe »
d'Ele. Se Caim chega a confessar que a sua culpa é « grande
demais », é por saber que se encontra diante de Deus e do
seu justo juízo. Na realidade, só diante do Senhor é que o
homem pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a sua
gravidade. Tal foi a experiência de David, que, depois « de
ter feito o que é mal aos olhos do Senhor » e de ser
repreendido pelo profeta Natã (cf. 2
Sam 11-12),
exclama: « Eu reconheço os meus pecados, e as minhas culpas
tenho-as sempre diante de mim. Pequei contra Vós, só contra
Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos » (Sal 51
50, 5-6).
22.
Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido
do homem fica ameaçado e adulterado, como afirma de maneira
lapidar o Concílio Vaticano II: « Sem o Criador, a criatura
não subsiste. (...) Antes, se se esquece Deus, a própria
criatura se obscurece ». 17 O homem deixa de conseguir
sentir-se como « misteriosamente outro » face às diversas
criaturas terrenas; considera-se apenas como um de tantos
seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu um
estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito
horizonte da sua dimensão física, reduz-se de certo modo a «
uma coisa », deixando de captar o carácter « transcendente »
do seu « existir como homem ». Deixa de considerar a vida
como um dom esplêndido de Deus, uma realidade « sagrada »
confiada à sua responsabilidade e, consequentemente, à sua
amorosa defesa, à sua « veneração ». A vida torna-se
simplesmente « uma coisa », que ele reivindica como sua
exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e
manipular.
Assim,
diante da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não
é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais
autêntico da sua existência, assumindo com verdadeira
liberdade estes momentos cruciais do próprio « ser ».
Preocupa-se somente com o « fazer », e, recorrendo a
qualquer forma de tecnologia, moureja a programar, controlar
e dominar o nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em
vez de experiências primordiais que requerem ser « vividas
», tornam-se coisas que se pretende simplesmente « possuir »
ou « rejeitar ».
Aliás,
uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende que o
sentido de todas as coisas resulte profundamente deformado,
e a própria natureza, já não vista como mater 1,
fique reduzida a « material » sujeito a todas as
manipulações. A isto parece conduzir certa mentalidade
técnico-científica, predominante na cultura contemporânea,
que nega a ideia mesma de uma verdade própria da criação que
se há-de reconhecer, ou de um desígnio de Deus sobre a vida
que temos de respeitar. E isto não é menos verdade, quando a
angústia pelos resultados de tal « liberdade sem lei » induz
alguns à exigência oposta de uma « lei sem liberdade », como
sucede, por exemplo, em ideologias que contestam a
legitimidade de qualquer forma de intervenção sobre a
natureza, como que em nome de uma sua « divinização », o que
uma vez mais menospreza a sua dependência do desígnio do
Criador.
Na
realidade, vivendo « como se Deus não existisse », o homem
perde o sentido não só do mistério de Deus, mas também do
mistério do mundo, e do mistério do seu próprio ser.
23. O
eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente
ao materialismo
prático, no
qual prolifera o individualismo, o utilitarismo e o
hedonismo. Também aqui se manifesta a validade perene
daquilo que escreve o Apóstolo: « Como não procuraram ter de
Deus conhecimento perfeito, entregou-os Deus a um sentimento
pervertido, a fim de que fizessem o que não convinha (Rm 1,
28). Assim os valores do ser ficam
substituídos pelos do ter.
O
único fim que conta, é a busca do próprio bem-estar
material. A chamada « qualidade de vida » é interpretada
prevalente ou exclusivamente como eficiência económica,
consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física,
esquecendo as dimensões mais profundas da existência, como
são as interpessoais, espirituais e religiosas.
Em tal
contexto, o sofrimento —
peso inevitável da existência humana mas também factor de
possível crescimento pessoal —, é « deplorado », rejeitado
como inútil, ou mesmo combatido como mal a evitar sempre e
por todos os modos. Quando não é possível superá-lo e a
perspectiva de um bem-estar, pelo menos futuro, se
desvanece, parece então que a vida perdeu todo o significado
e cresce no homem a tentação de reivindicar o direito à sua
eliminação.
Sempre
no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa
de ser visto como realidade tipicamente pessoal, sinal e
lugar da relação com os outros, com Deus e com o mundo. Fica
reduzido à dimensão puramente material: é um simples
complexo de órgãos, funções e energias, que há-de ser usado
segundo critérios de mero prazer e eficiência.
Consequentemente, também a sexualidade fica
despersonalizada e instrumentalizada: em lugar de ser sinal,
lugar e linguagem do amor, ou seja, do dom de si e do
acolhimento do outro na riqueza global da pessoa, torna-se
cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio
eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos.
Deste modo se deforma e falsifica o conteúdo original da
sexualidade humana, e os seus dois significados — unitivo e
procriativo —, inerentes à própria natureza do acto
conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união é
atraiçoada e a fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem
e da mulher. A geração torna-se,
então, o « inimigo » a evitar no exercício da sexualidade:
se aceite, é-o apenas porque exprime o próprio desejo ou
mesmo a determinação de ter o filho « a todo o custo », e
não já porque significa total acolhimento do outro e, por
conseguinte, abertura à riqueza de vida que o filho é
portador.
Na
perspectiva materialista até aqui descrita, as
relações interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E
os primeiros a sofrerem os danos são a mulher, a criança, o
enfermo ou atribulado, o idoso. O critério próprio da
dignidade pessoal — isto é, o do respeito, do altruísmo e do
serviço — é substituído pelo critério da eficiência, do
funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por aquilo
que « é », mas por aquilo que « tem, faz e rende ». É a
supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
24. É no
íntimo da consciência moral que
se consuma o eclipse do sentido de Deus e do homem, com
todas as suas múltiplas e funestas consequências sobre a
vida. Em questão está, antes de mais, a consciência de
cada pessoa, onde
esta, na sua unicidade e irrepetibilidade, se encontra a sós
com Deus. 18 Mas, em certo sentido, é posta em questão
também a « consciência moral » da
sociedade:esta é, de algum modo, responsável, não só
porque tolera ou favorece comportamentos contrários à vida,
mas também porque alimenta a « cultura da morte », chegando
a criar e consolidar verdadeiras e próprias « estruturas de
pecado » contra a vida. A consciência moral, tanto do
indivíduo como da sociedade, está hoje — devido também à
influência invasora de muitos meios de comunicação social —,
exposta a um perigo
gravíssimo e mortal: o
perigo da confusão
entre o bem e o mal,precisamente no que se refere ao
fundamental direito à vida. Uma parte significativa da
sociedade actual revela-se tristemente semelhante àquela
humanidade que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita
« de homens que sufocam a verdade na injustiça » (1, 18):
tendo renegado Deus e julgando poder construir a cidade
terrena sem Ele, « desvaneceram nos seus pensamentos », pelo
que « se obscureceu o seu insensato coração » (1, 21); «
considerando-se sábios, tornaram-se néscios » (1, 22),
fizeram-se autores de obras dignas de morte, e « não só as
cometem, como também aprovam os que as praticam » (1, 32).
Quando a consciência, esse luminoso olhar da alma (cf. Mt 6,
22-23), chama « bem ao mal e mal ao bem » (Is 5,
20), está já no caminho da sua degeneração mais preocupante
e da mais tenebrosa cegueira moral.
Mas
todos esses condicionalismos e tentativas de impor silêncio
não conseguem sufocar a voz do Senhor, que ressoa na
consciência de cada homem: é sempre deste sacrário íntimo da
consciência que pode recomeçar um novo caminho de amor, de
acolhimento e de serviço à vida humana.
«
Aproximaste-vos do sangue de aspersão » (cf. Heb 12,
22.24): sinais
de esperança e convite ao compromisso
25. «
A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! » (Gn 4,
10). Não é só a voz do sangue de Abel, o primeiro inocente
morto, a gritar por Deus, fonte e defensor da vida. Também o
sangue de todos os outros homens, assassinados depois de
Abel, é voz que brada ao Senhor. De uma forma absolutamente
única, porém, grita a Deus a
voz do sangue de Cristo, de
quem Abel, na sua inocência, é figura profética, como nos
recorda o autor da Carta aos Hebreus: « Vós, porém,
aproximaste-vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo,
(...) de Jesus, o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue
de aspersão que fala melhor do que o de Abel » (12, 22.24).
É o
sangue de aspersão. Símbolo
e sinal prefigurador dele fora o sangue dos sacrifícios da
Antiga Aliança, com os quais Deus exprimia a vontade de
comunicar a sua vida aos homens, purificando-os e
consagrando-os (cf. Ex 24,
8; Lv 17,
11). Agora em Cristo, tudo isso se cumpre e realiza: o d'Ele
é o sangue de aspersão que redime, purifica e salva; é o
sangue do Mediador da Nova Aliança, « derramado por muitos,
em remissão dos pecados » (Mt 26,
28). Este sangue, que brota do peito trespassado de Cristo
na Cruz (cf. Jo 19,
34), « fala melhor » do que o sangue de Abel; aquele, com
efeito, exprime e exige uma « justiça » mais profunda, mas
sobretudo implora misericórdia, 19 torna-se junto do Pai
intercessão pelos irmãos (cf. Heb 7,
25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova.
O
sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do
amor do Pai, manifesta
também como o homem é precioso aos olhos de Deus e quão
inestimável seja o valor da sua vida. Isto
mesmo nos recorda o apóstolo Pedro: « Sabei que fostes
resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por
tradição dos vossos pais, não a preço de coisas
corruptíveis, prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de
Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem defeito algum »
(1 Ped 1,
18-19). Contemplando precisamente o sangue precioso de
Cristo, sinal da sua doação de amor (cf. Jo 13,
1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a dignidade
quase divina de cada homem, e pode exclamar com incessante e
agradecida admiração: « Que grande valor deve ter o homem
aos olhos do Criador, se "mereceu tão grande Redentor"
(Precónio Pascal), se "Deus deu o seu Filho", para que ele,
o homem, "não pereça, mas tenha a vida eterna" (cf. Jo 3,
16) »! 20
Além
disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua grandeza
e, consequentemente, a sua vocação consiste no dom
sincero de si. Precisamente
porque é derramado como dom de vida, o sangue de Jesus já
não é sinal de morte, de separação definitiva dos irmãos,
mas instrumento de uma comunhão que é riqueza de vida para
todos. Quem, no sacramento da Eucaristia, bebe este sangue e
permanece em Jesus (cf. Jo 6,
56), vê-se associado ao mesmo dinamismo de amor e doação de
vida d'Ele, para levar à plenitude a primordial vocação ao
amor que é própria de cada homem (cf. Gn 1,
27; 2, 18-24).
É,
enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a
força para se empenharem a favor da vida. Precisamente
esse sangue é o motivo mais forte de esperança, melhor é
o fundamento da certeza absoluta de que, segundo o desí-
gnio de Deus, a vitória será da vida. «
Nunca mais haverá morte » — exclama a voz poderosa que sai
do trono de Deus na Jerusalém celeste (Ap 21,
4). E S. Paulo assegura-nos que a vitória actual sobre o
pecado é sinal e antecipação da vitória definitiva sobre a
morte, quando « se cumprirá o que está escrito: "A morte foi
tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória?
Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" » (1 Cor 15,
54-55).
26. Na
realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas
sociedade e culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela
« cultura da morte ». Dar-se-ia, por conseguinte, uma imagem
unilateral que poderia induzir a um estéril desânimo, se a
denúncia das ameaças contra a vida não fosse acompanhada
pela apresentação dos sinais
positivos, operantes
na actual situação da humanidade.
Infelizmente, estes sinais positivos têm com frequência
dificuldade em manifestar-se e ser reconhecidos, talvez
também porque não recebem adequada atenção dos meios de
comunicação social. Mas quantas iniciativas de ajuda e
amparo às pessoas mais débeis e indefesas surgiram — e
continuam a surgir — na comunidade cristã e na sociedade, a
nível local, nacional e internacional, por obra de
indivíduos, grupos, movimentos e organizações de vário
género!
Muitos
são ainda os esposos que,
com generosa responsabilidade, sabem acolher os filhos como
« o maior dom do matrimónio ». 21 E não faltam famílias que,
para além do seu serviço quotidiano à vida, sabem também
abrir-se ao acolhimento de crianças abandonadas, de
adolescentes e jovens em dificuldade, de pessoas inválidas,
de idosos que vivem na solidão. Numerosos são os centros
de ajuda à vida ou
instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que,
com admirável dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e
material às mães em dificuldade, tentadas a recorrer ao
aborto. Surgem e multiplicam-se ainda os grupos
de voluntários, empenhados
em dar hospitalidade a quem não tem família, encontra-se em
condições de particular dificuldade ou precisa de
reencontrar um ambiente educativo que o ajude a superar
hábitos destrutivos e recuperar o sentido da vida.
A medicina, promovida
com grande empenho por investigadores e profissionais,
prossegue no seu esforço por encontrar remédios cada vez
mais eficazes: resultados, antes totalmente impensáveis e
capazes de abrir promissoras perspectivas, são hoje obtidos
em favor da vida nascente, das pessoas que sofrem e dos
doentes em fase grave ou terminal. Várias entidades e
organizações se mobilizam para levar aos países mais
atingidos pela miséria e por doenças crónicas, tais
benefícios da medicina mais avançada. Do mesmo modo,
associações nacionais e internacionais de médicos movem-se
rapidamente, para prestar socorro às populações provadas por
calamidades naturais, epidemias ou guerras. Apesar de estar
ainda longe da sua plena consecução uma verdadeira justiça
internacional na partilha dos recursos médicos, como não
reconhecer, nos passos até agora dados, o sinal de crescente
solidariedade entre os povos, de apreciável sensibilidade
humana e moral, e de maior respeito pela vida?
27.
Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas,
aqui e além concretizadas, de legalizar a eutanásia,
surgiram em todo o mundo movimentos
e iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando
estes movimentos, de acordo com a sua inspiração autêntica,
agem com determinada firmeza mas sem recorrer à violência,
então eles favorecem uma tomada de consciência mais ampla e
profunda do valor da vida, fazem apelo e realizam um empenho
mais decisivo em sua defesa.
Como
não recordar, além disso, todos
aqueles gestos diários de acolhimento, de sacrifício, de
cuidado desinteressado, que
um número incalculável de pessoas realiza com amor nas
famílias, nos hospitais, nos orfanatos, nos lares da
terceira idade, e noutros centros ou comunidades em defesa
da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de Jesus,
« bom samaritano » (cf. Lc 10,
29-37), e sustentada pela sua força, sempre esteve em
primeira fila nestes confins da caridade: muitos dos seus
filhos e filhas, especialmente religiosas e religiosos, em
formas antigas e novas, consagraram e continuam a consagrar
a sua vida a Deus, dando-a por amor do próximo mais débil e
necessitado.
Estes
gestos constroem em profundidade aquela « civilização do
amor e da vida », sem a qual a existência das pessoas e da
sociedade perde o seu significado humano mais autêntico.
Ainda que ninguém os notasse, e ficassem escondidos aos
olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, « que vê no
segredo » (Mt 6,
4), saberá não só recompensá-los, mas também torná-los desde
já fecundos de frutos duradouros para todos.
Entre
os sinais de esperança, há que incluir ainda o crescimento,
em muitos estratos da opinião pública, de uma
nova sensibilidade cada vez mais contrária à guerra como
instrumento de solução dos conflitos entre os povos, e
sempre mais inclinada à busca de instrumentos eficazes, mas
« não violentos », para bloquear o agressor armado. No mesmo
horizonte, se coloca igualmente a
aversão cada vez mais difusa na opinião pública à pena de
morte — mesmo
vista só como instrumento de « legítima defesa » social —,
tendo em consideração as possibilidades que uma sociedade
moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma
que, enquanto torna inofensivo aquele que o cometeu, não lhe
tira definitivamente a possibilidade de se redimir.
Também
ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à
qualidade de vida e à ecologia, que
se regista sobretudo nas sociedades mais avançadas, nas
quais os anseios das pessoas já não estão concentrados tanto
sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na
procura de um melhoramento global das condições de vida.
Particularmente significativo é o despertar da reflexão
ética acerca da vida: a aparição e o desenvolvimento cada
vez maior da bioética favoreceu
a reflexão e o diálogo — entre crentes e não crentes, como
também entre crentes de diversas religiões — sobre problemas
éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do
homem.
28.
Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos,
plenamente conscientes de que nos encontramos perante um
combate gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte
e a vida, a « cultura da morte » e a « cultura da vida ».
Encontramo-nos não só « diante », mas necessariamente « no
meio » de tal conflito: todos estamos implicados e tomamos
parte nele, com a responsabilidade iniludível de decidir
incondicionalmente a favor da vida.
Também
para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: « Vê,
ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; do outro, a
morte e o mal. (...) Coloco diante de ti a vida e a morte, a
felicidade e a maldição. Escolhe
a vida, e então viverás com toda a tua posteridade » (Dt 30,
15.19). É um convite muito apropriado para nós, chamados
cada dia a ter de escolher entre a « cultura da vida » e a «
cultura da morte ». Mas o apelo do Deuteronómio é ainda mais
profundo, porque nos chama a uma opção especificamente
religiosa e moral. Trata-se de dar à própria existência uma
orientação fundamental, vivendo com fidelidade e coerência a
Lei do Senhor: « Recomendo-te hoje que ames
o Senhor, teu Deus, que andes
nos seus caminhos, que guardes
os seus preceitos, suas
leis e seus decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás
com toda a tua posteridade. Ama o Senhor, teu Deus, escuta a
sua voz e permanece-Lhe fiel, porque
é Ele a tua vida e
a longevidade dos teus dias » (30, 16.19-20).
A
decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude o
seu significado religioso e moral, quando brota, é plasmada
e alimentada pela fé
em Cristo. Nada
ajuda tanto a enfrentar positivamente o conflito entre a
morte e a vida, no qual estamos imersos, como a fé no Filho
de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os homens, «
para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10,
10): é a fé no
Ressuscitado, que venceu a morte; é
a fé no sangue de Cristo « que fala melhor do que o de Abel
» (Heb 12,
24).
Assim,
com a luz e a força desta fé, perante os desafios da
situação actual, a Igreja toma consciência mais viva da
graça e da responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de
anunciar, celebrar e servir o Evangelho
da vida.
CAPÍTULO II
VIM PARA QUE TENHAM VIDA
A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
« A
vida manifestou-se, nós vimo-la » (1 Jo 1,
2): o olhar
voltado para Cristo, « o Verbo da vida »
29.
Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida,
presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que
dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o
bem poderá ter força para vencer o mal!
Este é
o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes,
é chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé
em Jesus Cristo, « o Verbo da vida » (1 Jo
1, 1). O Evangelho
da vida não é
uma simples reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a
vida humana; nem é apenas um preceito destinado a
sensibilizar a consciência e provocar mudanças
significativas na sociedade; tampouco é a ilusória promessa
de um futuro melhor. O Evangelho
da vida é uma
realidade concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria
pessoa de Jesus. Ao
apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com
estas palavras: « Eu sou o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14,
6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro:
« Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que
esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em Mim,
não morrerá jamais » (Jo 11,
25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade, recebe
a vida do Pai (cf. Jo 5,
26) e veio estar com os homens, para os tornar participantes
deste dom: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância » (Jo 10,
10).
Deste
modo, a possibilidade de « conhecer » a
verdade plena sobre
o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a
acção e a própria pessoa de Jesus; e desta « fonte »,
vem-lhe, de forma especial, a capacidade de « praticar »
perfeitamente tal verdade (cf. Jo 3,
21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em
plenitude a responsabilidade de amar e servir, de defender e
promover a vida humana.
Em
Cristo, de facto, é anunciado definitivamente e concedido
plenamente aquele Evangelho
da vida, que,
oferecido já na Revelação do Antigo Testamento e, antes
ainda, de algum modo escrito no próprio coração de cada
homem e mulher, ressoa em toda a consciência « desde o
princípio », ou seja, desde a própria criação, de tal modo
que, não obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode
também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão
humana. Como
escreve o Concílio Vaticano II, Cristo « com toda a sua
presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras,
sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa
ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da verdade,
completa totalmente e confirma com o testemunho divino a
revelação, a saber, que Deus está connosco para nos libertar
das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para
a vida eterna ». 22
30. É,
pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos
novamente escutar d'Ele « as palavras de Deus » (Jo 3,
34) e meditar o Evangelho
da vida. O
sentido mais profundo e original desta meditação sobre a
mensagem revelada relativa à vida humana foi recolhido pelo
apóstolo João, quando escreve, no início da sua Primeira
Carta: « O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que
vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas
mãos apalparam acerca do Verbo da vida, — porque a vida
manifestou-se, nós vimo-la, damos testemunho dela e vos
anunciamos esta vida eterna que estava no Pai e que nos foi
manifestada — o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos,
para que também vós tenhais comunhão connosco » (1, 1-3).
Então,
a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, «
Verbo da vida ». Graças a este anúncio e a este dom, a vida
física e espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena,
adquire plenitude de valor e significado: com efeito, a vida
divina e eterna é o fim, para o qual está orientado e
chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho
da vida encerra
tudo aquilo que a própria experiência e a razão humana dizem
acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e condu-lo
à sua plena realização.
« O
Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me
salvou » (Ex 15,
2): a vida é
sempre um bem
31. Na
verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora
preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos
acontecimentos do Êxodo, fulcro da experiência de fé do
Antigo Testamento, que Israel descobre quão preciosa é aos
olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao
extermínio, dado que sobre todos os seus recém-nascidos do
sexo masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex 1,
15-22), o Senhor revela-Se-lhes como salvador, capaz de
assegurar um futuro a quem vive sem esperança. Nasce, assim,
em Israel uma certeza bem precisa: a
sua vida não
se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico
arbítrio; mas, ao contrário, é objecto
de um terno e intenso amor da parte de Deus.
A
libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o
reconhecimento de uma dignidade indelével e o
início de uma história nova, na
qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a
descoberta de si próprio. A experiência do Êxodo é
constitutiva e paradigmática. Lá Israel compreendeu que,
todas as vezes que estiver ameaçado na sua existência, terá
apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para
encontrar n'Ele eficaz assistência: « Formei-te, tu és meu
servo; Israel, não te posso esquecer » (Is 44,
21).
Assim,
enquanto reconhece o valor da própria existência como povo,
Israel avança também na
percepção do sentido e valor da vida como tal. É
uma reflexão que se desenvolve particularmente nos Livros
Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da
vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das
contradições da existência, a fé é chamada a dar uma
resposta.
É
sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a
põe à prova. Como não identificar o gemido universal do
homem na meditação do Livro de Job? O inocente esmagado pelo
sofrimento é compreensivelmente levado a interrogar-se: «
Por que razão foi concedida a luz ao infeliz, e a vida
àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte
sem que ela venha e a procuram com mais ardor que um
tesouro? » (3, 20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a
fé encaminha para o reconhecimento confiante e adorador do «
mistério »: « Sei que podes tudo e que nada Te é impossível
» (Job 42,
2).
Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada
vez maior, o germe de vida imortal posto pelo Criador no
coração dos homens: « Todas as coisas que Deus fez são boas
no seu tempo. Além disso, pôs no coração 1 a duração
inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de
um extremo ao outro » (Ecl 3,
11). Este germe
de totalidade e plenitude anseia
por se manifestar no amor e realizar-se, por dom gratuito de
Deus, na participação da sua vida eterna.
« Pela
fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças »
(Act 3,
16): na
precariedade da existência humana, Jesus realiza plenamente
o sentido da vida
32. A
experiência do povo da Aliança renova-se em todos os «
pobres » que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, « amante
da vida » (Sab 11,
26), já tinha tranquilizado Israel no meio dos perigos,
assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem
ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida
é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor.
« Os
cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada
aos pobres » (Lc 7,
22). Com estas palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61, 1),
Jesus apresenta o significado da sua própria missão: deste
modo, aqueles que sofrem por causa de uma existência de
qualquer modo « limitada » ouvem d'Ele a boa
nova do
interesse que Deus nutre por eles e têm a confirmação de que
também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas mãos do
Pai (cf. Mt 6,
25-34).
Quem
se sente particularmente interpelado pela pregação e acção
de Jesus, são os « pobres ». As multidões de doentes e
marginalizados, que O seguem e procuram (cf. Mt 4,
23-25), encontram na sua palavra e nos seus gestos a
revelação do valor imenso da vida deles e de quão fundados
sejam os seus anseios de salvação.
Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas
origens. Ao anunciar Jesus como Aquele que « andou de lugar
em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram
oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele » (Act 10,
38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação
que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas
situações de miséria e pobreza da vida humana. Assim faz
Pedro, ao curar o paralítico que estava colocado diariamente
junto da porta « Formosa » do templo de Jerusalém a pedir
esmola: « Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que
tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda!
» (Act 3,
6). Pela fé em Jesus, « Príncipe da vida » (Act 3,
15), a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra
a consciência de si mesma e a sua plena dignidade.
A
palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem
respeito apenas a quem está enfermo, aflito pela provação,
ou é vítima das diversas formas de marginalização social.
Vão mais fundo, tocando o
próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões
morais e espirituais. Só
quem reconhece que a própria vida está tocada pelas mazelas
do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da
própria existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas
próprias palavras: « Não são os que têm saúde que precisam
de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos,
mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento » (Lc 5,
31-32).
Pelo
contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da
parábola evangélica julga poder assegurar a própria vida com
a posse de simples bens materiais, na realidade engana-se. A
vida está-lhe escapando, e bem depressa ficará privado dela
sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro significado: «
Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o
que acumulaste para quem será? » (Lc 12,
20).
33. Na
vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta «
dialéctica » singular entre a experiência da contingência da
vida humana e a afirmação do seu valor. De facto, a
precariedade caracteriza a vida de Jesus, desde o seu
nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento dos
justos, que se unem ao « sim » pronto e feliz de Maria (cf. Lc 1,
38). Mas logo aparece também arejeição por
parte de um mundo que se torna hostil e procura o Menino «
para O matar » (Mt 2,
13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do
mistério desta vida que entra no mundo: « não havia para
eles lugar na hospedaria » (Lc 2,
7). Exactamente por este contraste — as ameaças e
inseguranças, por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo
outro — resplandece com maior força a glória que irradia da
casa de Nazaré e da manjedoura de Belém: esta vida que nasce
é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc 2,
10-11).
As
contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por
Jesus: « sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos
enriquecer pela pobreza » (2 Cor 8,
9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas
despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha
das condições mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil 2,
6-7). Jesus vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida
até ao momento culminante da cruz: « Humilhou-Se a Si mesmo,
feito obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é que
Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o
nome » (Fil 2,
8-9). É precisamente na
sua morte que Jesus
revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto
a sua doação na cruz se torna fonte de vida nova para todos
os homens (cf. Jo 12,
32). Neste peregrinar por entre as contradições e a própria
perda da vida, Jesus é guiado pela certeza de que ela está
nas mãos do Pai. Por isso, na cruz pode dizer-Lhe: « Pai,
nas tuas mãos entrego o meu espírito » (Lc 23,
46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o valor
da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o
lugar onde se realiza a salvação para a humanidade inteira!
«
Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho » (Rm 8,
28-29): a
glória de Deus resplandece no rosto do homem
34. A
vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de
experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a
compreender.
Por
que motivo a vida é um bem? Esta
pergunta percorre a Bíblia inteira, encontrando já nas
primeiras páginas uma resposta eficaz e admirável. A vida
que Deus dá ao homem é diversa e original, se comparada com
a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de
emparentado com o pó da terra (cf. Gn 2,
7; 3, 19; Job 34,
15; Sal 103
102, 14; 104 103, 29), é,
no mundo, manifestação de Deus, sinal da sua presença,
vestígio da sua glória (cf. Gn 1,
26-27; Sal 8,
6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião, com a
célebre definição: « A glória de Deus é o homem vivo ». 23
Ao homem foi dada uma
dignidade sublime, que
tem as suas raízes na ligação íntima que o une ao seu
Criador: no homem, brilha um reflexo da própria realidade de
Deus.
Afirma-o o Livro do Génesis, na primeira narração das
origens, ao colocar o homem no vértice da actividade
criadora de Deus, como seu coroamento, no termo de um
processo que vai do caos indefinido até à criatura mais
perfeita. Na
criação, tudo está ordenado para o homem e tudo lhe fica
submetido: «
Enchei e dominai a terra. Dominai (...) sobre todos os
animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao
homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no
outro relato das origens: « O Senhor levou o homem e
colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para
o guardar » (Gn 2,
15). Confirma- -se assim o primado do homem sobre as coisas:
estas estão ordenadas ao homem e entregues à sua
responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o homem
ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao
estatuto de coisa.
Na
narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais
criaturas é evidenciada sobretudo pelo facto de apenas a sua
criação ser apresentada como fruto de uma especial decisão
da parte de Deus, de uma deliberação que consiste em
estabelecer uma
ligação particular e específica com o Criador: «
Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança » (Gn 1,
26). A vida que
Deus oferece ao homem, é
um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua
criatura.
Israel
interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação
particular e específica do homem com Deus. O Livro de
Ben-Sirá reconhece que Deus, ao criar os homens, «
revestiu-os da força conveniente e fê-los à própria imagem »
(17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só o
domínio sobre o mundo, mas também as
faculdades espirituais mais específicas do homem, como
a razão, o discernimento do bem e do mal, a vontade livre: «
Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o bem e o
mal » (Sir 17,
7). A
capacidade de alcançar a verdade e a liberdade são
prerrogativas do homem enquanto
criatura feita à imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e
justo (cf. Dt 32,
4). Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é «
capaz de conhecer e amar o seu Criador ». 24 A vida que Deus
dá ao homem, é muito mais do que uma existência no tempo. É
tensão para uma plenitude de vida; é germe
de uma existência que ultrapassa os próprios limites do
tempo: « Deus
criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à imagem da
sua própria natureza » (Sab 2,
23).
35.
Também o relato jahvista das origens exprime a mesma
convicção. Esta antiga narração fala deum sopro divino que é
insuflado no homem, para
que este dê entrada na vida: « O Senhor Deus formou o homem
do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida,
e o homem transformou-se num ser vivo » (Gn 2,
7).
A
origem divina deste espírito de vida explica a perene
insatisfação que acompanha o homem, ao longo dos seus dias.
Obra plasmada pelo Senhor e trazendo em si mesmo um traço
indelével de Deus, o homem tende naturalmente para Ele.
Quando escuta o anseio profundo do coração, não pode deixar
de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: «
Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive
inquieto enquanto não repousa em Vós ». 25
Como é
eloquente aquela insatisfação que se apodera da vida do
homem no Éden, quando lhe resta como única referência o
mundo vegetal e animal (cf. Gn 2,
20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de um ser que é
carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2,
23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador,
pode satisfazer a exigência de diálogo interpessoal, tão
vital para a existência humana. No outro, homem ou mulher,
reflecte-Se o próprio Deus, abrigo definitivo e plenamente
feliz de toda a pessoa.
« Que
é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para
dele cuidardes? » — interroga-se o Salmista (Sal 8,
5). Diante da imensidão do universo, coisa bem pequena é o
homem; mas é precisamente este contraste que faz sobressair
a sua grandeza: « Pouco lhe falta para que seja um ser
divino; de glória e de honra o coroastes » (Sal 8,
6). A glória
de Deus resplandece no rosto do homem. Nele,
o Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado
e comovido, Santo Ambrósio: « Terminou o sexto dia, ficando
concluída a criação do mundo com a formação daquela
obra-prima, o homem, que exerce o domínio sobre todos os
seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema
beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos
manter um silêncio reverente, já que o Senhor Se repousou de
toda a obra do mundo. Repousou-Se no íntimo do homem,
repousou-Se na sua mente e no seu pensamento; de facto,
tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O imitar,
émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes.
Nestes seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem
repousarei senão naquele que é humilde, pacífico e teme as
minhas palavras?" (Is 66,
1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão
maravilhosa que nela encontra o seu repouso ». 26
36.
Infelizmente, este projecto maravilhoso de Deus ficou
ofuscado pela irrupção do pecado na história. Com o pecado,
o homem revolta-se contra o Criador, acabando por idolatrar
as criaturas: «
Veneraram a criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao
Criador » (Rm 1,
25). Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de
Deus em si mesmo, mas é tentado a ofendê-la também nos
outros, substituindo as relações de comunhão por atitudes de
desconfiança, indiferença, inimizade, até chegar ao ódio
homicida. Quando não se reconhece Deus
como tal,atraiçoa-se o sentido profundo do homem e
prejudica-se a comunhão entre os homens.
Na
vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e
manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de
Deus em carne humana: « Ele é a imagem do Deus invisível » (Col 1,
15), « o resplendor da sua glória e a imagem da sua
substância » (Heb 1,
3). Ele é a imagem perfeita do Pai.
O
projecto de vida confiado ao primeiro Adão encontra
finalmente em Cristo a sua realização. Enquanto a
desobediência de Adão arruína e deturpa o desígnio de Deus
sobre a vida do homem e introduz a morte no mundo, a
obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se
derrama sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as
portas do reino da vida (cf. Rm 5,
12-21). Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro homem, Adão,
foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito
vivificante » (1 Cor 15,
45).
A
todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a
plenitude da vida: neles, a imagem divina é restaurada,
renovada e levada à perfeição. Este é o desígnio de Deus
para os seres humanos: tornarem-se « conformes à imagem do
seu Filho » (Rm 8,
29). Só assim, no esplendor desta imagem, é que o homem pode
ser liberto da escravidão da idolatria, pode reconstruir a
fraternidade perdida e reencontrar a sua identidade.
« Quem
crê em Mim, ainda que esteja morto viverá » (Jo 11,
26): o
dom da vida eterna
37. A
vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz
meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre
está « n'Ele » e constitui « a luz dos homens » (Jo 1,
4), consiste
em ser gerados por Deus e participar na plenitude do seu
amor: « A
todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu-lhes o
poder de se tornarem filhos de Deus; eles que não nasceram
do sangue, nem de vontade carnal, nem de vontade do homem,
mas sim de Deus » (Jo 1,
12-13).
Umas
vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar,
simplesmente como « a vida »; e apresenta o ser gerado por
Deus como condição necessária para poder alcançar o fim para
o qual o homem foi criado: « Quem não nascer de novo, não
pode ver o Reino de Deus » (Jo 3,
3). O dom desta vida constitui o objecto próprio da missão
de Jesus; Ele « é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao
mundo » (Jo 6,
33), de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: « Quem
Me segue (...) terá a luz da vida » (Jo 8,
12).
Outras
vezes, Jesus fala de « vida eterna », sem querer com o
adjectivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. «
Eterna » é a vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude
de participação na vida do « Eterno ». Todo aquele que crê
em Jesus e vive em comunhão com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3,
15; 6, 40), porque d'Ele escuta as únicas palavras que
revelam e infundem plenitude de vida à sua existência; são
as « palavras de vida eterna », que Pedro reconhece na sua
confissão de fé: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu
tens palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos
que és o Santo de Deus » (Jo 6,
68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus quando
se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: « A vida
eterna consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jo 17,
3). Conhecer a Deus e ao seu Filho é acolher o mistério da
comunhão de amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na
própria vida que se abre, já
desde agora, à
vida eterna pela participação
na vida divina.
38.
Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e
simultaneamente a vida
dos filhos de Deus. Um
assombro incessante e uma gratidão sem limites não podem
deixar de se apoderar do crente diante desta inesperada e
inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo. O crente faz
suas as palavras do apóstolo João: « Vede com que amor nos
amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus.
E somo-lo de facto! (...) Caríssimos, agora somos filhos de
Deus, mas ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Sabemos, porém, que, quando Ele Se manifestar, seremos
semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (1 Jo 3,
1-2).
Assim, chega
ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A
dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à
sua proveniência de Deus, mas também ao seu fim, ao seu
destino de comunhão com Deus no conhecimento e no amor
d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu especifica e
completa a sua exaltação do homem: « glória de Deus » é,
sim, « o homem vivo », mas « a vida do homem consiste na
visão de Deus ». 27
Daqui
resultam consequências imediatas para a vida humana em sua
própria condição
terrena, na
qual já germinou e está a crescer a vida eterna. Se o homem
ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor
encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e
profundidade nas dimensões divinas desse bem. Em semelhante
perspectiva, o amor que cada ser humano tem pela vida não se
reduz à simples busca de um espaço onde poder exprimir-se a
si mesmo e entrar em relação com os outros, mas evolui até à
certeza feliz de poder fazer da própria existência o « lugar
» da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A
vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência no
tempo, mas assume-a e condu-la ao seu último destino: « Eu
sou a ressurreição e a vida; (...) todo aquele que vive e
crê em Mim não morrerá jamais » (Jo 11,
25.26).
« A
cada um, pedirei contas do seu irmão » (cf. Gn 9,
5): veneração
e amor pela vida dos outros
39. A
vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura
d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta
vida, portanto, Deus
é o único senhor: o
homem não pode dispor dela. Deus mesmo o confirma a Noé,
depois do dilúvio: « Ao homem, pedirei contas da vida do
homem, seu irmão » (Gn 9,
5). E o texto bíblico preocupa-se em sublinhar como a
sacralidade da vida tem o seu fundamento em Deus e na sua
acção criadora: « Porque Deus fez o homem à sua imagem » (Gn 9,
6).
Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus,
em seu poder: « Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser
vivente, e o sopro de vida de todos os homens » — exclama
Job (12, 10). « O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à
habitação dos mortos e retira de lá » (1 Sam 2,
6). Apenas Ele pode afirmar: « Só Eu é que dou a vida e dou
a morte » (Dt 32,
39).
Mas
Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas,
sim, como cuidado
e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se
é verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o é
menos que estas são mãos amorosas como as de uma mãe que
acolhe, nutre e toma conta do seu filho: « Fico sossegado e
tranquilo como criança deitada nos braços de sua mãe, como
um menino deitado é a minha alma » (Sal 131
130, 2; cf. Is 49,
15; 66, 12-13; Os 11,
4). Assim nas vicissitudes dos povos e na sorte dos
indivíduos, Israel não vê o fruto de pura casualidade ou de
um destino cego, mas o resultado de um desígnio de amor,
pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e
se contrapõe às forças de morte que nascem do pecado: « Deus
não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá
nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência
» (Sab 1,
13-14).
40. Da
sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade,
inscrita desde as origens no coração do homem, na
sua consciência. A pergunta « que fizeste? » (Gn 4,
10), dirigida por Deus a Caim depois de ter assassinado o
irmão Abel, traduz a experiência de cada homem: no fundo da
sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à
inviolabilidade da vida — a própria e a alheia —, como
realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de
Deus Criador e Pai.
O
preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o
centro dos « dez mandamentos » na aliança do Sinai (cf. Ex 34,
28). Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: « Não
matarás » (Ex20, 13), « não causarás a morte do
inocente e do justo » (Ex 23,
7); mas proíbe também — como se explicita na legislação
posterior de Israel — qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21,
12-27). Tem-se de reconhecer que esta sensibilidade pelo
valor da vida no Antigo Testamento, apesar de já tão
notável, não alcança ainda a perfeição do Sermão da
Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação
penal então vigente, que previa castigos corporais pesados e
até mesmo a pena de morte. Mas globalmente esta mensagem,
que o Novo Testamento levará à perfeição, é já um forte
apelo ao respeito pela inviolabilidade da vida física e da
integridade pessoal, e tem o seu ápice no mandamento
positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: «
Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19,
18).
41. O
mandamento « não matarás », contido e aprofundado no
mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado
em toda a sua validade pelo Senhor Jesus. Ao
jovem rico que Lhe pede « Mestre, que hei-de fazer de bom
para alcançar a vida eterna? », responde: « Se queres entrar
na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19,
16.17). E, logo em primeiro lugar, cita « não matarás » (19,
18). No Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça
superior à
dos escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: «
Ouvistes que foi dito aos antigos: "Não matarás; aquele que
matar está sujeito a ser condenado". Eu, porém, digo-vos:
quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o
tribunal » (Mt 5,
21-22).
Com a
sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulteriormente
as exigências positivas do mandamento referente à
inviolabilidade da vida. Estavam já presentes no Antigo
Testamento, onde a legislação se preocupava em garantir e
salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada: o
estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral,
a própria vida antes de nascer (cf. Ex 21,
22; 22, 20-26). Mas com Jesus, essas exigências positivas
adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se em toda a sua
amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão(familiar,
membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de
Israel), passam pelo cuidar dodesconhecido, para
chegarem até ao amor do inimigo.
O
desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se
próximo de
todo aquele que se encontra necessitado, até assumir a
responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloquente
e incisivo, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,
25-37). Também o inimigo cessa de o ser para quem é obrigado
a amá-lo (cf. Mt 5,
38-48; Lc 6,
27-35) e « fazer-lhe bem » (cf. Lc 6,
27.33.35), levando remédio às carências da sua vida, com
prontidão e sem esperar recompensa (cf. Lc 6,
34-35). No vértice deste amor, está a oração pelo inimigo,
pela qual nos colocamos em sintonia com o amor providente de
Deus: « Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai
pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis
filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz que o
sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva
sobre os justos e os pecadores » (Mt 5,
44-45; cf. Lc 6,
28.35).
Assim,
o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do
homem, tem a sua dimensão mais profunda na exigência de veneração
e amor por
toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o
apóstolo Paulo, dando eco às palavras de Jesus (cf. Mt 19,
17-18), dirige aos cristãos de Roma: « Com efeito: "Não
cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não
cobiçarás" e qualquer dos outros mandamentos resumem-se
nestas palavras: "Amarás
ao próximo como a ti mesmo". A
caridade não faz mal ao próximo. A caridade é, pois, o pleno
cumprimento da lei » (Rm13, 9-10).
«
Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra » (Gn 1,
28): as
responsabilidades do homem pela vida
42.
Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus
confia a cada homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a
participar no domínio que Ele tem sobre o mundo: «
Abençoando-os, Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos,
enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar,
sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem
na terra" » (Gn 1,
28).
O
texto bíblico manifesta claramente a amplitude e
profundidade do domínio que Deus concede ao homem. Trata-se,
antes de mais, de domínio
sobre a terra e sobre todo o ser vivo, como
recorda o Livro da Sabedoria: « Deus dos nossos pais e
Senhor de misericórdia, (...) formastes o homem pela vossa
sabedoria, para dominar sobre as criaturas a quem destes a
vida, para governar o mundo com santidade e justiça » (9,
1.2-3). Também o Salmista exalta o domínio do homem como
sinal da glória e honra recebidas do Criador: « Destes-lhe
domínio sobre as obras das vossas mãos. Tudo submetestes
debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem excepção,
até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes
do mar, tudo o que se move nos oceanos » (Sal 8,
7-9).
Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2,
15), o homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente
de vida, ou
seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua
dignidade pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao
presente, mas também às gerações futuras. É a questão
ecológica —
desde a preservação do « habitat » natural das diversas
espécies animais e das várias formas de vida, até à «
ecologia humana » propriamente dita 28 — que, no texto
bíblico, encontra luminosa e forte indicação ética para uma
solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a vida. Na
realidade, « o domínio conferido ao homem pelo Criador não é
um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e
abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade. A
limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e
expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da
árvore" (cf. Gn 2,
16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com
a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só
biológicas, mas também morais, que não podem impunemente ser
transgredidas ». 29
43.
Uma certa participação do homem no domínio de Deus
manifesta-se também na específica
responsabilidade que
lhe está confiada no
referente à vida propriamente humana. Essa
responsabilidade atinge o auge na doação da vida, através
da geração por
obra do homem e da mulher no matrimónio, como nos recorda o
Concílio Vaticano II: « O mesmo Deus que disse "não é bom
que o homem esteja só" (Gn 2,
18) e que "desde a origem fez o ser humano varão e mulher" (Mt 19,
4), querendo comunicar uma participação especial na sua obra
criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: "crescei e
multiplicai-vos" (Gn 1,
28) ». 30
Ao
falar de « uma participação especial » do homem e da mulher
na « obra criadora » de Deus, o Concílio pretende pôr em
relevo como a geração do filho é um facto não só
profundamente humano mas também altamente religioso,
enquanto implica os cônjuges, que formam « uma só carne » (Gn 2,
24), e simultaneamente o próprio Deus que Se faz presente.
Como escrevi na Carta
às Famílias, «
quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este
traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do
próprio Deus: na
biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao
afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores
de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser
humano, não nos referimos apenas às leis da biologia;
pretendemos sobretudo sublinhar que, na
paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está
presente de
um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração
"sobre a terra". Efectivamente, só de Deus pode provir
aquela "imagem e semelhança" que é própria do ser humano,
tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da
criação ». 31
Isto
mesmo ensina, com linguagem clara e eloquente, o texto
sagrado ao mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a
« mãe de todos os viventes » (Gn 3,
20); consciente da intervenção de Deus, Eva exclama: « Gerei
um homem com o auxílio do Senhor » (Gn 4,
1). Assim, na geração, através da comunicação da vida dos
pais ao filho transmite-se, graças à criação da alma
imortal, 32 a imagem e semelhança do próprio Deus. Neste
sentido, se exprime o início do « livro da genealogia de
Adão »: « Quando Deus criou o homem, fê-lo à semelhança de
Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os. Deu-lhes o
nome de Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta
anos, Adão gerou um filho à sua imagem e semelhança, e
pôs-lhe o nome de Set » (Gn 5,
1-3). Precisamente neste papel de colaboradores de Deus, que transmite
a sua imagem à nova criatura, está
a grandeza dos cônjuges, dispostos « a colaborar com o amor
do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada dia
mais e enriquece a sua família ». 33 À luz disto, o bispo
Anfilóquio exaltava o « matrimónio santo, eleito e elevado
acima de todos os dons terrenos », porque « gerador da
humanidade, artífice de imagens de Deus ». 34
Assim
o homem e a mulher, unidos pelo matrimónio, estão associados
a uma obra divina: por meio do acto da geração, o dom de
Deus é acolhido, e uma nova vida se abre ao futuro.
Mas,
uma vez realçada a missão específica dos pais, há que
acrescentar: a
obrigação de acolher e servir a vida compete a todos e deve
manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições de
maior fragilidade. É
o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir para ser amado
e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de
sofrimento: famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes,
encarcerados... Aquilo que for feito a cada um deles, é
feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25,
31-46).
« Vós
é que plasmastes o meu interior » (Sal 139
138, 13): a
dignidade da criança ainda não nascida
44. A
vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer
ao entrar no mundo, quer quando sai do tempo para ir
ancorar-se na eternidade. Na Palavra de Deus, encontramos
numerosos apelos ao cuidado e respeito pela vida, sobretudo
quando esta aparece ameaçada pela doença e pela velhice. Se
faltam apelos directos e explícitos para salvaguardar a vida
humana nas suas origens, especialmente a vida ainda não
nascida, ou então a vida próxima do seu termo, isso
explica-se facilmente pelo facto de que a mera possibilidade
de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em tais condições
estava fora do horizonte religioso e cultural do Povo de
Deus.
No
Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma
maldição, enquanto se considerava uma bênção a prole
numerosa: « Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do
ventre, um mimo do Senhor » (Sal 127
126, 3; cf. Sal 128
127, 3-4). Para esta convicção, concorre certamente a
consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança, chamado
a multiplicar-se segundo a promessa feita a Abraão: « Ergue
os olhos para os céus e conta as estrelas, se fores capaz de
as contar (...) será assim a tua descendência » (Gn 15,
5). Mas influi sobretudo a certeza de que a vida transmitida
pelos pais tem a sua origem em Deus, como o atestam tantas
páginas bíblicas que, com respeito e amor, falam da
concepção, da moldagem da vida no ventre materno, do
nascimento e da ligação íntima entre o momento inicial da
existência e a acção de Deus Criador.
«
Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te
conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei
» (Jr 1,
5): a
existência de cada indivíduo, desde as suas origens, obedece
ao desígnio de Deus. Job,
na profundidade da sua dor, detém-se a contemplar a obra de
Deus na miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe,
retirando daí motivo de confiança e exprimindo a certeza da
existência de um projecto divino para a sua vida: « As tuas
mãos formaram-me e fizeram-me e, de repente, vais
aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com o barro;
far-me-ás, agora, voltar ao pó? Não me espremeste como o
leite e coalhaste como o queijo? De pele e de carne me
revestiste, de ossos e de nervos me consolidaste. Deste-me a
vida e favoreceste-me; a tua providência conservou o meu
espírito » (10, 8-12). Modulações cheias de enlevo adorador
pela intervenção de Deus na vida em formação no ventre
materno ressoam também nos Salmos. 35
Como
pensar que este maravilhoso processo de germinação da vida
possa subtrair-se, por um só momento, à obra sapiente e
amorosa do Criador para ficar abandonado ao arbítrio do
homem? Não o pensa, seguramente, a mãe dos sete irmãos que
professa a sua fé em Deus, princípio e garantia da vida
desde a concepção e ao mesmo tempo fundamento da esperança
da nova vida para além da morte: « Não sei como aparecestes
nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma
nem a vida e nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas
o Criador do mundo, autor do nascimento do homem e criador
de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia,
tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso
de vós mesmos por amor das suas leis » (2 Mac7,
22-23).
45. A
revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento
indiscutível do valor da vida desde os seus inícios. A
exaltação da fecundidade e o trepidante anseio da vida
ressoam nas palavras com que Isabel rejubila pela sua
gravidez: ao Senhor « aprouve retirar a minha ignomínia » (Lc 1,
25). Mas o valor da pessoa, desde a sua concepção, é
celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e Isabel
e entre as duas crianças, que trazem no seio. São
precisamente eles, os meninos, a revelarem a chegada da era
messiânica: no seu encontro, começa a agir a força redentora
da presença do Filho de Deus no meio dos homens. « Depressa
se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os benefícios da
chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a
primeira a escutar a voz, mas João foi o primeiro a
pressentir a graça. Aquela escutou segundo a ordem da
natureza; este exultou em virtude do mistério. Ela apreendeu
a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz
da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas
proclamam a graça de Deus, estes realizam-na interiormente,
iniciando no seio de suas mães o mistério de piedade; e, por
um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de
seus filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou cheia
do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este
que, uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe
». 36
«
Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz" » (Sal 116
115, 10): a
vida na velhice e no sofrimento
46.
Também no que se refere aos últimos dias da existência,
seria anacrónico esperar da revelação bíblica uma referência
expressa à problemática actual do respeito pelas pessoas
idosas e doentes, ou uma explícita condenação das tentativas
de lhes antecipar violentamente o fim: encontramo-nos, de
facto, perante um contexto cultural e religioso que não está
pervertido por tais tentações, mas antes reconhece na
sabedoria e experiência do ancião uma riqueza insubstituível
para a família e a sociedade.
A
velhice goza de prestígio e é circundada de veneração (cf. 2
Mac 6, 23). O
justo não pede para ser privado da velhice nem do seu peso;
antes pelo contrário: « Vós sois a minha esperança, a minha
confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na
velhice e na decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para
que narre às gerações a força do vosso braço, o vosso poder
a todos os que hão-de vir » (Sal 71
70, 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como
aquele em que « não mais haverá (...) um velho que não
complete os seus dias » (Is 65,
20).
Mas,
como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice? Como
comportar-se frente à morte? O crente sabe que a sua vida
está nas mãos de Deus: «
Senhor, nas tuas mãos está a minha vida » (cf. Sal 16 15,
5); e d'Ele aceite também a morte: « Este é o juízo do
Senhor sobre toda a humanidade; e porque quererias reprovar
a lei do Altíssimo? » (Sir 41,
4). O homem não é senhor nem da vida nem da morte; tanto
numa como noutra, deve abandonar-se totalmente à « vontade
do Altíssimo », ao seu desígnio de amor.
Também
no momento da doença, o
homem é chamado a viver a mesma entrega ao Senhor e a
renovar a sua confiança fundamental n'Aquele que « sara
todas as enfermidades » (cf. Sal 103
102, 3). Quando toda e qualquer esperança de saúde parece
fechar-se para o homem — a ponto de o levar a gritar: « Os
meus dias são como a sombra que declina, e vou-me secando
como o feno » (Sal102 101, 12) — , mesmo então o
crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador
de Deus. A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da
morte, mas a uma invocação cheia de esperança: « Confiei
mesmo quando disse: "Sou um homem de todo infeliz" » (Sal 116
115, 10); « Senhor, meu Deus, a vós clamei e fui curado.
Senhor, livrastes a minha alma da mansão dos mortos;
destes-me a vida quando já descia ao túmulo » (Sal 30
29, 3-4).
47. A
missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto
Deus tem a peito também a vida corporal do homem. «
Médico do corpo e do espírito », 37 Jesus foi mandado pelo
Pai para anunciar a boa nova aos pobres e para curar os de
coração despedaçado (cf. Lc 4,
18; Is 61,
1). Depois, ao enviar os seus discípulos pelo mundo,
confia-lhes uma missão na qual a cura dos doentes acompanha
o anúncio do Evangelho: « Pelo caminho, proclamai que o
reino dos Céus está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os
mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios » (Mt 10,
7-8; cf. Mc 6,
13; 16, 18).
Certamente, a
vida do corpo na sua condição terrena não é um absoluto para
o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a
abandonar por um bem superior; como diz Jesus, « quem quiser
salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por
Mim e pelo Evangelho, salvá-la-á » (Mc 8,
35). A este propósito, o Novo Testamento oferece diversos
testemunhos. Jesus não hesita em sacrificar-Se a Si próprio
e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai (cf. Jo 10,
17) e aos seus (cf. Jo 10,
15). Também a morte de João Baptista, precursor do Salvador,
atesta que a existência terrena não é o bem absoluto: é mais
importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que esta
possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6,
17-29). E Estêvão, ao ser privado da vida temporal porque
testemunha fiel da ressurreição do Senhor, segue os passos
do Mestre e vai ao encontro dos seus lapidadores com as
palavras do perdão (cf. Act 7,
59-60), abrindo a estrada do exército inumerável dos
mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.
Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou
morrer; efectivamente, senhor absoluto de tal decisão é
apenas o Criador, Aquele em quem « vivemos, nos movemos e
existimos » (Act 17,
28).
«
Todos os que a seguirem alcançarão a vida » (Bar 4,
1): da Lei do
Sinai ao dom do Espírito
48. A
vida traz indelevelmente inscrita nela uma
verdade sua. O
homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter
a vida nesta verdade, que
lhe é essencial. Desviar-se dela, equivale a condenar-se a
si próprio à insignificância e à infelicidade, com a
consequência de poder tornar-se também uma ameaça para a
existência dos outros, já que foram rompidos os diques que
garantiam o respeito e a defesa da vida, em qualquer
situação.
A
verdade da vida é revelada pelo mandamento de Deus. A
palavra do Senhor indica concretamente a direcção que a vida
deve seguir, para poder respeitar a própria verdade e
salvaguardar a sua dignidade. Não é apenas o mandamento
específico — « não matarás » (Ex 20,
13; Dt 5,
17) — a garantir a protecção da vida; mas a
Lei do Senhor em toda a sua extensão está
ao serviço dessa protecção, porque revela aquela verdade na
qual a vida encontra o seu pleno significado.
Não
admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja
tão intensamente ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua
dimensão corpórea. Naquela, o mandamento é
dado comocaminho da vida: «
Vê, ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a
morte e o mal. Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu
Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus
preceitos, suas leis e seus decretos. Se assim fizeres,
viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo Senhor,
teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir » (Dt 30,
15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a
existência do povo de Israel, mas também o mundo de hoje e
do futuro e a existência de toda a humanidade. De facto, não
é possível, absolutamente, a vida permanecer autêntica e
plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua vez, está
essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à «
lei da vida » (Sir 17,
11). O bem que se tem de realizar, não é imposto à vida como
um fardo que pesa sobre ela, porque a própria razão da vida
é precisamente o bem, e a vida é construída apenas mediante
o cumprimento do bem.
Portanto, é a
Lei no seu todo que
salvaguarda plenamente a vida do homem. Isto explica como é
difícil manter-se fiel ao preceito « não matarás », quando
não são observadas as demais « palavras de vida » (Act 7,
38), às quais ele está ligado. Fora deste horizonte, o
mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação
extrínseca, da qual bem depressa desejar-se-ão ver os
limites e procurar-se-ão as atenuantes ou as excepções. Só
se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de Deus, do
homem e da história, é que o preceito « não matarás »
voltará a resplandecer como o melhor para o homem em todas
as suas dimensões e relações. Nesta perspectiva, podemos
atingir a plenitude da verdade contida na passagem do Livro
do Deuteronómio, retomada por Jesus na resposta à primeira
tentação: « O homem não vive somente de pão, mas de tudo o
que sai da boca do Senhor » (8, 3; cf. Mt 4,
4).
É
escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com
dignidade e justiça; é observando a lei de Deus que o homem
pode produzir frutos de vida e de felicidade: « Todos os que
a seguirem alcançarão a vida, e os que a abandonarem cairão
na morte » (Bar 4,
1).
49. A
história de Israel mostra como é difícil permanecer
fiel à lei da vida, que
Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no Sinai ao
povo da Aliança. Contra a busca de projectos de vida
alternativos ao plano de Deus, levantam-se de modo
particular os Profetas, recordando insistentemente que só o
Senhor é a autêntica fonte da vida. Assim escreve Jeremias:
« O meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me a Mim,
fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas,
que não podem reter as águas » (2, 13). Os Profetas apontam
o dedo acusador contra aqueles que desprezam a vida e violam
os direitos das pessoas: « Esmagam como o pó da terra a
cabeça do pobre » (Am 2,
7); « mancharam este lugar com o sangue de inocentes » (Jr 19,
4). E a estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de
uma vez verbera a cidade de Jerusalém, designando-a como « a
cidade sanguinária » (22, 2; 24, 6.9), a « cidade que
derramou o sangue no seu seio » (22, 3).
Mas,
ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida, os
Profetas preocupam-se sobretudo por suscitar a
esperança de um novo princípio de vida, capaz
de fundar um renovado relacionamento com Deus e com os
irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e
extraordinárias para compreender e actuar todas as
exigências contidas no Evangelho
da vida. Isso
será possível unicamente mediante um dom de Deus, que
purifique e renove: « Derramarei sobre vós uma água pura e
sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e
de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei
em vós um espírito novo » (Ez 36,
25-26; cf. Jr 31,
31-34). Graças a este « coração novo », pode-se compreender
e realizar o sentido mais verdadeiro e profundo da vida: ser um
dom que se consuma no dar-se. É
a mensagem luminosa sobre o valor da vida que nos vem da
figura do Servo do Senhor: « Oferecendo a sua vida em
sacrifício expiatório, terá uma posteridade duradoura e
viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos tormentos,
verá a luz » (Is53, 10.11).
Na
existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno cumprimento,
ao ser dado o coração novo por meio do seu Espírito. Com
efeito, Cristo não revoga a Lei, mas leva-a ao seu pleno
cumprimento (cf.Mt 5,
17): a Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor
recíproco (cf. Mt 7,
12). N'Ele, a Lei torna-se definitivamente « evangelho »,
feliz notícia do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz
toda a existência às suas raízes e perspectivas originais. É
a Nova Lei, «
a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus » (Rm 8,
2), cuja expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a
vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15,
13), é o dom
de si no amor aos irmãos: «
Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos
os irmãos » (1 Jo 3,
14). É lei de liberdade, alegria e felicidade.
«
Hão-de olhar para Aquele que trespassaram » (Jo 19,
37): na árvore
da Cruz, cumpre-se o Evangelho da Vida
50. No
final deste capítulo, em que meditámos a mensagem cristã
sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a contemplar
Aquele que trespassaram e
que atrai todos a Si (cf. Jo 19,
37; 12, 32). Levantando os olhos para « o espectáculo » da
cruz (cf. Lc 23,
48), poderemos descobrir, nesta árvore gloriosa, o
cumprimento e a plena revelação de todo o Evangelho
da vida.
Nas
primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, « as trevas
cobriram toda a terra (...) por o sol se haver eclipsado. O
véu do Templo rasgou-se ao meio » (Lc 23,
44.45). É o símbolo de uma grande perturbação cósmica e de
uma luta atroz das forças do bem contra as do mal, da vida
contra a morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma
luta dramática entre a « cultura da morte » e a « cultura da
vida ». Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas
trevas; pelo contrário, aquela desenha-se ainda mais clara e
luminosa, revelando-se como o centro, o sentido e o fim da
história inteira e de toda a vida humana.
Jesus
é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da
sua máxima « impotência », e a sua vida parece totalmente
abandonada aos insultos dos seus adversários e às mãos dos
seus carrascos: é humilhado, escarnecido, ultrajado (cf. Mc 15,
24-36). E contudo, precisamente diante de tudo isso e « ao
vê-Lo expirar daquela maneira », o centurião romano exclama:
« Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus! » (Mc 15,
39). Revela-se assim, no momento da sua extrema debilidade,
a identidade do Filho de Deus: na
Cruz, manifesta-se a sua glória!
Com a
sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de
todo o ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai,
pedindo o perdão para os seus perseguidores (cf. Lc 23,
34), e ao malfeitor, que Lhe pede para Se recordar dele no
seu reino, responde: « Em verdade te digo: hoje estarás
Comigo no Paraíso » (Lc 23,
43). Depois da sua morte, « abriram-se os túmulos e muitos
corpos de santos que estavam mortos, ressuscitaram » (Mt 27,
52). A salvação, operada por Jesus, é doação de vida e de
ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus tinha
concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. Act 10,
38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições
eram sinal de outra salvação que consiste no perdão dos
pecados, ou seja, na libertação do homem do mal mais
profundo, e na sua elevação à própria vida de Deus.
Na
Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e
definitiva, o prodígio da serpente erguida por Moisés no
deserto (cf. Jo 3,
14-15; Nm 21,
8-9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que foi
trespassado, cada homem com a sua existência ameaçada
recobra a esperança segura de encontrar libertação e
redenção.
51.
Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu
olhar e merece compenetrada meditação. « Quando Jesus tomou
o vinagre, exclamou: "Tudo está consumado". E inclinando a
cabeça, entregou o espírito » (Jo 19,
30). E o soldado romano « perfurou-Lhe o lado com uma lança
e logo saiu sangue e água » (Jo 19,
34).
Tudo
chegou já ao seu pleno cumprimento. O « entregar o espírito
» exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à de
qualquer outro ser humano, mas parece aludir também ao « dom
do Espírito », com que Ele nos resgata da morte e desperta
para uma vida nova.
A
própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os
sacramentos da Igreja — cujo símbolo são o sangue e a água,
que brotam do lado de Cristo —, aquela vida é
incessantemente comunicada aos filhos de Deus, constituídos
como povo da nova aliança. Da
Cruz, fonte de vida, nasce e se propaga o « povo da vida ».
Deste
modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais
profundas daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no
mundo, tinha dito: « Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua
vontade » (cf. Heb 10,
9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo « amado os seus
que estavam no mundo, amou-os até ao fim » (Jo 13,
1), entregando-Se inteiramente por eles.
Ele
que não « veio para ser servido, mas para servir e dar a
vida em resgate por todos » (Mc 10,
45), chega ao vértice do amor na Cruz: « Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos » (Jo 15,
13). E Ele morreu por nós, quando éramos ainda pecadores
(cf. Rm 5,
8).
Deste
modo, Cristo proclama que a
vida atinge o seu centro, sentido e plenitude quando é
doada.
Chegada a este ponto, a meditação faz-se louvor e
agradecimento e, ao mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus
e a seguir os seus passos (cf. 1
Ped 2, 21).
Também
nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos,
realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido e o
destino da nossa existência.
Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo
e comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se
cada dia, Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e
fizermos a sua vontade.
Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda
a palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não
apenas a « não matar » a vida do homem, mas também a sabê-la
venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS
A LEI SANTA DE DEUS
« Se
queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19,
17): Evangelho
e mandamento
52. «
Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: "Que hei-de fazer
de bom para alcançar a vida eterna?" » (Mt 19,
16). Jesus respondeu: « Se queres entrar na vida eterna,
cumpre os mandamentos » (Mt 19,
17). O Mestre fala da vida eterna, isto é, da participação
na própria vida de Deus. A esta vida, chega-se através da
observância dos mandamentos, incluindo naturalmente aquele
que diz « não matarás ». Este é precisamente o primeiro
preceito do Decálogo que Jesus recorda ao jovem, quando este
Lhe solicita os mandamentos que terá de cumprir: « Retorquiu
Jesus: "Não matarás; não cometerás adultério; não
roubarás..." » (Mt 19,
18).
O
mandamento de Deus nunca está separado do seu amor: é
sempre um dom para o crescimento e a alegria do homem. Como
tal, constitui um aspecto essencial e um elemento
inalienável do Evangelho, mais, o próprio mandamento se
configura como « evangelho », ou seja, uma boa e feliz
notícia. Também o Evangelho
da vida é um
grande dom de Deus e simultaneamente uma exigente tarefa
para o homem. Aquele suscita assombro e gratidão na pessoa
livre e pede para ser acolhido, guardado e valorizado com
vivo sentimento de responsabilidade: dando-lhe a
vida, Deus exige do
homem que a ame, respeite e promova. Deste modo, o
dom faz-se mandamento, e o
mandamento é em si mesmo um dom.
Imagem
viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei
e senhor. « Deus fez o homem — escreve S. Gregório de Nissa
— de forma tal que pudesse desempenhar a sua função de rei
da terra. (...) O homem foi criado à imagem d'Aquele que
governa o universo. Tudo indica que, desde o princípio, a
sua natureza está marcada pela realeza. (...) Assim a
natureza humana, criada para ser senhora das outras
criaturas, à semelhança do Soberano do universo, foi
estabelecida como sua imagem viva, participante da dignidade
do divino Arquétipo ». 38 Chamado para ser fecundo e
multiplicar-se, sujeitar a terra e dominar sobre os seres
que lhe são inferiores (cf. Gn 1,
28), o homem é rei e senhor não apenas das coisas, mas
também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo sentido,
da vida que lhe é dada e que ele pode transmitir por meio da
geração cumprida no amor e no respeito do desígnio de Deus.
No entanto, o seu domínio não
é absoluto, masministerial: é
reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus. Por
isso, o homem deve vivê-lo com sabedoria
e amor, participando
da sabedoria e do amor incomensurável de Deus. E isto
verifica-se pela obediência à sua Lei santa: uma obediência
livre e alegre (cf. Sal 119
118) que nasce e se alimenta da certeza de que os preceitos
do Senhor são dons de graça, confiados ao homem sempre e só
para o seu bem, para a defesa da sua dignidade pessoal e
para a prossecução da sua felicidade.
Aquilo
que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais agora
no contexto da vida: o homem não é senhor absoluto e árbitro
incontestável, mas — e nisso está a sua grandeza
incomparável — é « ministro do desígnio de Deus ». 40
A vida
é confiada ao homem como um tesouro que não pode malbaratar,
como um talento que há-de pôr a render. Dela terá de prestar
contas ao seu Senhor (cf. Mt 25,
14-30; Lc 19,
12-27).
« Ao
homem, pedirei contas da vida do homem » (Gn 9,
5): a vida
humana é sagrada e inviolável
53. «
A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe
"a acção criadora de Deus" e mantém-se para sempre numa
relação especial com o Criador, seu único fim. Só Deus é
senhor da vida, desde o princípio até ao fim: ninguém, em
circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir
directamente um ser humano inocente ». 41 Com estas
palavras, a Instrução Donum
vitaeexpõe o conteúdo central da revelação de Deus sobre
a sacralidade e inviolabilidade da vida humana.
De
facto, a Sagrada
Escritura apresenta
ao homem o preceito « não matarás » (Ex 20,
13; Dt 5,
17) como mandamento divino. Como já sublinhei, encontra-se
no Decálogo, no coração da Aliança, que o Senhor concluiu
com o povo eleito; mas estava já contido na aliança
primordial de Deus com a humanidade, após o castigo
purificador do dilúvio, que fora provocado pelo incremento
do pecado e da violência (cf. Gn 9,
5-6).
Deus
proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua
imagem e semelhança (cf. Gn1,
26-28). A vida humana possui, portanto, um carácter sagrado
e inviolável, no qual se reflecte a própria inviolabilidade
do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se fará juiz
severo de qualquer violação do mandamento « não matarás »,
colocado na base de toda a convivência social. Deus é ogo'el, ou
seja, o defensor do inocente (cf. Gn 4,
9-15; Is 41,
14; Jr 50,
34; Sal 19
18, 15). Deus comprova, assim também, que não Se alegra com
a perdição dos vivos (cf. Sab 1,
13). Com esta, apenas Satanás se pode alegrar: foi pela sua
inveja que a morte entrou no mundo (cf. Sab 2,
24). « Assassino desde o princípio », o diabo é também «
mentiroso e pai da mentira » (Jo 8,
44): enganando o homem, levou-o para metas de pecado e de
morte, apresentadas como objectivos e frutos de vida.
54. O
preceito « não matarás », explicitamente, tem um forte
conteúdo negativo: indica o limite extremo que nunca poderá
ser transposto. Implicitamente, porém, induz a uma atitude
positiva de respeito absoluto pela vida, levando a
promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor que se dá,
acolhe e serve. Também o povo da Aliança, ainda que
lentamente e não sem contradições, experimentou um
amadurecimento progressivo nessa direcção, preparando-se
assim para a grande proclamação de Jesus: o amor do próximo
é um mandamento semelhante ao do amor de Deus; « destes dois
mandamentos depende toda a Lei e os Profetas » (Mt 22,
36-40). « Com efeito, (...) não matarás (...) e qualquer dos
outros mandamentos — sublinha S. Paulo — resumem-se nestas
palavras: "Amarás ao próximo como a ti mesmo" » (Rm 13,
9; cf. Gal 5,
14). Assumido e levado à perfeição na Nova Lei, o preceito «
não matarás » permanece como condição indispensável para
poder « entrar na vida » (cf. Mt 19,
16-19). E, nesta mesma perspectiva, aponta decisivamente a
palavra do apóstolo João: « Todo aquele que odeia o seu
irmão é homicida e sabeis que nenhum homicida tem a vida
eterna permanentemente em si » (1 Jo 3,
15).
Desde
os seus primórdios, a Tradição
viva da Igreja —
como testemunha a Didaké, o
escrito cristão extra-bíblico mais antigo — reafirmou de
modo categórico o mandamento « não matarás »: « Há dois
caminhos, um da vida e o outro da morte; mas entre os dois
existe uma grande diferença. (...) Segundo o preceito da
doutrina: não matarás; (...) não matarás o embrião por meio
do aborto, nem farás que morra o recém-nascido. (...) Este é
o caminho da morte: (...) não têm compaixão do pobre, não
sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu Criador;
assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer
criaturas de Deus; desprezam o necessitado, oprimem o
atribulado, são defensores dos ricos e juízes injustos dos
pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais, filhos,
permanecer sempre longe de todas estas culpas! ». 42
Ao
longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e
unanimamente o valor absoluto e permanente do mandamento «
não matarás ». É sabido que, nos primeiros séculos, o
homicídio se contava entre os três pecados mais graves —
juntamente com a apostasia e o adultério —, e exigia-se uma
penitência pública particularmente onerosa e demorada, antes
de ser concedido ao homicida arrependido o perdão e a
readmissão na comunidade eclesial.
55.
Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual
está presente a imagem de Deus, é pecado de particular
gravidade. Só
Deus é dono da vida! No
entanto, frente aos múltiplos casos, frequentemente
dramáticos, que a vida individual e social apresenta, a
reflexão dos crentes procurou sempre alcançar um
conhecimento mais completo e profundo daquilo que o
mandamento de Deus proíbe e prescreve. 43 Com efeito, há
situações onde os valores propostos pela Lei de Deus parecem
formar um verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo, da legítima
defesa, onde
o direito de proteger a própria vida e o dever de não lesar
a alheia se revelam, na prática, dificilmente conciliáveis.
Sem dúvida que o valor intrínseco da vida e o dever de
dedicar um amor a si mesmo não menor que aos outros, fundam um
verdadeiro direito à própria defesa. O
próprio preceito que manda amar os outros, enunciado no
Antigo Testamento e confirmado por Jesus, supõe o amor a si
mesmo como termo de comparação: « Amarás o teu próximo como
a ti mesmo »
(Mc 12,
31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao direito de se
defender por carência de amor à vida ou a si mesmo, mas
apenas em virtude de um amor heróico que, na linha do
espírito das bem-aventuranças evangélicas (cf. Mt 5,
38- 48), aprofunde o amor a si mesmo, transfigurando-o
naquela oblação radical cujo exemplo mais sublime é o
próprio Senhor Jesus.
Por
outro lado, « a legítima defesa pode ser, não somente um
direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável
pela vida de outrem, do bem comum da família ou da sociedade
». 44 Acontece, infelizmente, que a necessidade de colocar o
agressor em condições de não molestar implique, às vezes, a
sua eliminação. Nesta hipótese, o desfecho mortal há-de ser
atribuído ao próprio agressor que a tal se expôs com a sua
acção, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente
responsável por falta do uso da razão. 45
56.
Nesta linha, coloca-se o problema da pena
de morte, à
volta do qual se regista, tanto na Igreja como na sociedade,
a tendência crescente para pedir uma aplicação muito
limitada, ou melhor, a total abolição da mesma. O problema
há-de ser enquadrado na perspectiva de uma justiça penal,
que seja cada vez mais conforme com a dignidade do homem e
portanto, em última análise, com o desígnio de Deus para o
homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a sociedade
inflige, tem « como primeiro efeito o de compensar a
desordem introduzida pela falta ». 46 A autoridade pública
deve fazer justiça pela violação dos direitos pessoais e
sociais, impondo ao réu uma adequada expiação do crime como
condição para ser readmitido no exercício da própria
liberdade. Deste modo, a autoridade há-de procurar alcançar
o objectivo de defender a ordem pública e a segurança das
pessoas, não deixando, contudo, de oferecer estímulo e ajuda
ao próprio réu para se corrigir e redimir. 47
Claro
está que, para bem conseguir todos estes fins, a
medida e a qualidade da pena hão-de
ser atentamente ponderadas e decididas, não se devendo
chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos de
absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade
não fosse possível de outro modo. Mas, hoje, graças à
organização cada vez mais adequada da instituição penal,
esses casos são já muito raros, se não mesmo praticamente
inexistentes.
Em
todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo Catecismo
da Igreja Católica: «
na medida em que outros processos, que não a pena de morte e
as operações militares, bastarem para defender as vidas
humanas contra o agressor e para proteger a paz pública,
tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem
proporcionados e mais conformes com o fim em vista e a
dignidade humana ». 48
57. Se
se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer
vida, mesmo pela do réu e a do injusto agressor, o
mandamento « não matarás » tem valor absoluto quando se
refere à pessoa
inocente. E
mais ainda, quando se trata de um ser frágil e inerme que
encontra a sua defesa radical do arbítrio e da prepotência
alheia, unicamente na força absoluta do mandamento de Deus.
De
facto, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é
uma verdade moral explicitamente ensinada na Sagrada
Escritura, constantemente mantida na Tradição da Igreja e
unanimamente proposta pelo seu Magistério. Tal unanimidade é
fruto evidente daquele « sentido sobrenatural da fé » que,
suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o
Povo de Deus, quando « manifesta consenso universal em
matéria de fé e costumes ». 49
Face
ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na
sociedade, da percepção da absoluta e grave ilicitude moral
da eliminação directa de qualquer vida humana inocente,
sobretudo no seu início e no seu termo, o Magistério
da Igreja intensificou
as suas intervenções em defesa da sacralidade e
inviolabilidade da vida humana. Ao Magistério pontifício,
particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério
episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e
pastorais emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer
pelos Bispos individualmente. Não faltou sequer, forte e
incisiva na sua brevidade, a intervenção do Concílio
Vaticano II. 50
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos
seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja
Católica, confirmo
que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é
sempre gravemente imoral. Esta
doutrina, fundada naquela lei não-escrita que todo o homem,
pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2,
14-15), é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida
pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magisterio ordinário
e universal. 51
A
decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua
vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser
lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de
facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio
Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes
fundamentais da justiça e da caridade. « Nada e ninguém pode
autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja
ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente
incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido
requerer este gesto homicida para si ou para outrem confiado
à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou
implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa
legitimamente impor ou permitir ». 52
No
referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é
absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a
base de todo o relacionamento social autêntico, o qual, para
o ser verdadeiramente, não pode deixar de se fundar sobre a
verdade e a justiça, reconhecendo e tutelando cada homem e
cada mulher como pessoa, e não como coisa de que se possa
dispor. Diante da norma moral que proíbe a eliminação
directa de um ser humano inocente, «
não existem privilégios, nem excepções para ninguém. Ser
o dono do mundo ou o último "miserável" sobre a face da
terra, não faz diferença alguma: perante as exigências
morais, todos somos absolutamente iguais ». 53
«
Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião » (Sal 139
138, 16): o
crime abominável do aborto
58.
Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a
vida, o aborto provocado apresenta características que o
tornam particularmente grave e abjurável. O Concílio
Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, « crime
abominável ». 54
Mas
hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo
progressivamente em muitas consciências. A aceitação do
aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é
sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral
que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do
mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida.
Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a
coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar
as coisas pelo seu nome, sem
ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à
tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa
categórica a censura do Profeta: « Ai dos que ao mal chamam
bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por
trevas » (Is 5,
20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão
de uma terminologia ambígua, como « interrupção da gravidez
», que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a
atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este
fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um
mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para
alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a
morte deliberada e directa, independentemente da forma como
venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua
existência, que vai da concepção ao nascimento.
A
gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua
verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e,
particularmente, quando se consideram as circunstâncias
específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser
humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que
de mais inocente, em
absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado
um agressor, menos ainda um injusto agressor! É
frágil, inerme,
e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela
forma mínima de defesa constituída pela força suplicante dos
gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente
entregue à
protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E
todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e
pede a sua eliminação, ou até a provoca.
É
verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a
mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se
desfazer do fruto concebido não é tomada por razões
puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam
salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou
um nível de vida digno para os outros membros da família. Às
vezes, temem-se para o nascituro condições de existência
tais que levam a pensar que seria melhor para ele não
nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais
graves e dramáticas que sejam, nunca
podem justificar a supressão deliberada de um ser humano
inocente.
59. A
decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da
mãe, aparecem, com frequência, outras pessoas. Antes de
mais, culpado pode ser o pai da criança, não apenas quando
claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando
favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com
os problemas de uma gravidez: 55 desse modo, a família fica
mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade
de amor e na sua vocação para ser « santuário da vida ». Nem
se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do
âmbito familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não
raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente
psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há
dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa
particularmente sobre aqueles que directa ou indirectamente
a forçaram a abortar. Responsáveis são também os médicos e
restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao serviço
da morte a competência adquirida para promover a vida.
Mas a
responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que
promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os
administradores das estruturas clínicas onde se praticam os
abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma
responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos
aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de
permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade, como
também àqueles que deveriam ter assegurado — e não o fizeram
— válidas políticas familiares e sociais de apoio às
famílias, especialmente às mais numerosas ou com
particulares dificuldades económicas e educativas. Não se
pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela
incluindo instituições internacionais, fundações e
associações, que se batem sistematicamente pela legalização
e difusão do aborto no mundo. Neste sentido, o aborto
ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que
lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social:
é uma ferida gravíssima
infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que
deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi
na Carta às
Famílias, «
encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida,
não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a
civilização ». 56 Achamo-nos perante algo que bem se pode
definir uma «
estrutura de pecado » contra a vida humana ainda não
nascida.
60.
Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da
concepção, pelo menos até um certo número de dias, não pode
ainda ser considerado uma vida humana pessoal. Na realidade,
porém, « a partir do momento em que o óvulo é fecundado,
inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe,
mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta
própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já
desde então. A esta evidência de sempre (...) a ciência
genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou
que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o
programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta
pessoa individual, com as suas notas características já bem
determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de
uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes
cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e
encontrar prontas a agir ». 57 Não podendo a presença de uma
alma espiritual ser assinalada através da observação de
qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da
ciência sobre o embrião humano a fornecer « uma indicação
valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já
a partir desta primeira aparição de uma vida humana: como
poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana? ». 58
Aliás,
o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a
simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma
pessoa para se justificar a mais categórica proibição de
qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano.
Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e
mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério
não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou — e
ensina — que tem de ser garantido ao fruto da geração
humana, desde o primeiro instante da sua existência, o
respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano
na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: «
O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa
desde a sua concepção e,
por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser
reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e
primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano
inocente à vida ». 59
61. Os
textos da Sagrada
Escritura, que
nunca falam do aborto voluntário e, por conseguinte, também
não apresentam condenações directas e específicas do mesmo,
mostram pelo ser humano no seio materno uma consideração tal
que exige, como lógica consequência, que se estenda também a
ele o mandamento de Deus: « não matarás ».
A vida
humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua
existência, inclusive na fase inicial que precede o
nascimento. Desde o seio materno, o homem pertence a Deus
que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas
mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e
que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos
contados e cuja vocação está já escrita no « livro da vida »
(cf. Sal 139
138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno — como
testemunham numerosos textos bíblicos 60 — já o homem é
objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de
Deus.
A Tradição
cristã — como
justamente se realça na Declaração sobre
esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé
61 — é clara e unânime, desde as suas origens até aos nossos
dias, em classificar o aborto como desordem moral
particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu
primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se
praticava amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se
radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes
generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já
citada Didaké.
62 Entre os escritores eclesiásticos da área linguística
grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram
homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos,
porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, «
são já objecto dos cuidados da Providência divina ». 63
Entre os latinos, Tertuliano afirma: « É um homicídio
premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima
a alma já nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo
até ao nascer. É já um homem aquele que o será ». 64
Ao
longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina
foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos
seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter
científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão
da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação
quanto à condenação moral do aborto.
62. O Magistério
pontifício mais
recente reafirmou, com grande vigor, esta doutrina comum. Em
particular Pio XI, na encíclica Casti
connubii rejeitou
as alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII excluiu todo
o aborto directo, isto é, qualquer acto que vise
directamente destruir a vida humana ainda não nascida, «
quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas como
meio para o fim »; 66 João XXIII corroborou que a vida
humana é sagrada, porque « desde o seu despontar empenha
directamente a acção criadora de Deus ». 67 O Concílio
Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com
grande severidade: « A vida deve, pois, ser salvaguardada
com extrema solicitude, desde o primeiro momento da
concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis
». 68
A disciplina
canónica da Igreja, desde
os primeiros séculos, puniu com sanções penais aqueles que
se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas
mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos
históricos. O Código
de Direito Canónico de
1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão. 69
Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua
nesta linha quando determina que « quem procurar o aborto,
seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae
sententiae »,
70 isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos
aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena,
incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto não
se teria realizado: 71 com uma sanção assim reiterada, a
Igreja aponta este crime como um dos mais graves e
perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar
diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de
facto, a finalidade da pena de excomunhão é tornar
plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado
e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e
penitência.
Frente
a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar
da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não
conheceu mudança e é imutável. 72 Portanto, com a autoridade
que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em
comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas
condenaram o aborto e que, na consulta referida
anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram
unânime consenso sobre esta doutrina — declaro
que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio,
constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto
morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina
está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus
escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada
pelo Magistério ordinário e universal. 73
Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo
poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente
ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração
de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada
pela Igreja.
63. A
avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às recentes
formas de intervenção
sobre embriões humanos, que,
não obstante visarem objectivos em si legítimos, implicam
inevitavelmente a sua morte. É o caso da experimentação
sobre embriões, em
crescente expansão no campo da pesquisa biomédica e
legalmente admitida em alguns países. Se « devem ser
consideradas lícitas as intervenções no embrião humano, sob
a condição de que respeitem a vida e a integridade do
embrião, não comportem para ele riscos desproporcionados, e
sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas
condições de saúde ou para a sua sobrevivência individual »,
74 impõe-se, pelo contrário, afirmar que o uso de embriões
ou de fetos humanos como objecto de experimentação constitui
um crime contra a sua dignidade de seres humanos, que têm
direito ao mesmo respeito devido à criança já nascida e a
qualquer pessoa. 75
A
mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta os
embriões e os fetos humanos ainda vivos — às vezes «
produzidos » propositadamente para este fim através da
fecundação in vitro — seja como « material biológico » à
disposição, seja como fornecedores
de órgãos ou de tecidos para transplante no
tratamento de algumas doenças. Na realidade, o assassínio de
criaturas humanas inocentes, ainda que com vantagem para
outras, constitui um acto absolutamente inaceitável.
Especial atenção há-de ser reservada à avaliação moral das técnicas
de diagnose pré-natal, que
permitem individuar precocemente eventuais anomalias do
nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas
técnicas, a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa
e articuladamente. Quando estão isentas de riscos
desproporcionados para a criança e para a mãe, e se destinam
a tornar possível uma terapia precoce ou ainda a favorecer
uma serena e consciente aceitação do nascituro, estas
técnicas são moralmente lícitas. Mas, dado que as
possibilidade de cura antes do nascimento são hoje ainda
reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas são
postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita o
aborto selectivo, para impedir o nascimento de crianças
afectadas por tipos vários de anomalias. Semelhante
mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável, porque
pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo
parâmetros de « normalidade » e de bem-estar físico, abrindo
assim a estrada à legitimação do infanticídio e da
eutanásia.
Na
realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que
muitos irmãos nossos, afectados por graves deficiências,
conduzem a sua existência quando são aceites e amados por
nós, constituem um testemunho particularmente eficaz dos
valores autênticos que qualificam a vida e a tornam, mesmo
em condições difíceis, preciosa para o próprio e para os
outros. A Igreja sente-se solidária com os cônjuges que, com
grande ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus
filhos gravemente deficientes, tal como se sente grata a
todas as famílias que, pela adopção, acolhem os que são
abandonados pelos seus pais por causa de limitações ou
doenças.
« Só
Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32,
39): o drama
da eutanásia
64. No
outro topo da existência, o homem encontra-se diante do
mistério da morte. Hoje, na sequência dos progressos da
medicina e num contexto cultural frequentemente fechado à
transcendência, a experiência do morrer apresenta-se com
algumas características novas. Com efeito, quando prevalece
a tendência para apreciar a vida só na medida em que
proporciona prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um
contratempo insuportável, de que é preciso libertar-se a
todo o custo. A morte, considerada como « absurda » quando
interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um
futuro rico de possíveis experiências interessantes,
torna-se, pelo contrário, uma « libertação reivindicada »,
quando a existência é tida como já privada de sentido porque
mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento
sempre mais intenso.
Além
disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento
fundamental com Deus, o homem pensa que é critério e norma
de si mesmo e julga que tem inclusive o direito de pedir à
sociedade que lhe garanta possibilidades e modos de decidir
da própria vida com plena e total autonomia. Em particular,
o homem que vive nos países desenvolvidos é que assim se
comporta: a tal se sente impelido, entre outras coisas,
pelos contínuos progressos da medicina e das suas técnicas
cada vez mais avançadas. Por meio de sistemas e aparelhagens
extremamente sofisticadas, hoje a ciência e a prática médica
são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis e de
aliviar ou eliminar a dor, como também de sustentar e
prolongar a vida até em situações de debilidade extrema, de
reanimar artificialmente pessoas cujas funções biológicas
elementares sofreram danos imprevistos, de intervir para
tornar disponíveis órgãos para transplante.
Num
tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação daeutanásia, isto
é, de apoderar-se
da morte, provocando-a antes do tempo e,
deste modo, pondo fim « docemente » à vida própria ou
alheia. Na realidade, aquilo que poderia parecer lógico e
humano, quando visto em profundidade, apresenta-se absurdo
e desumano. Estamos
aqui perante um dos sintomas mais alarmantes da « cultura de
morte » que avança sobretudo nas sociedades do bem-estar,
caracterizadas por uma mentalidade eficientista que faz
aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número
crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita
frequência, estas acabam por ser isoladas da família e da
sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de
critérios de eficiência produtiva, segundo os quais uma vida
irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.
65.
Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes
de mais, defini-la claramente. Poreutanásia, em sentido
verdadeiro e próprio, deve-se
entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e
nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o
sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das
intenções e ao nível dos métodos empregues ». 76
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado «
excesso terapêutico », ou
seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à
situação real do doente, porque não proporcionadas aos
resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado
gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações,
quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em
consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um
prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo,
interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos
semelhantes ». 77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se
tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de
medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se
avaliar se os meios terapêuticos à disposição são
objectivamente proporcionados às perspectivas de
melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou
desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia;
exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à
morte. 78
Na
medicina actual, têm adquirido particular importância os
denominados «
cuidados paliativos »,destinados a tornar o sofrimento
mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo
tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste
contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude
do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos
para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco
de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser
considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita
sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para
conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de
maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento «
heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos.
Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de
narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a
consciência e abreviar a vida, « se não existem outros meios
e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o
cumprimento de outros deveres religiosos e morais ». 79 É
que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora
por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se
simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos
analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, «
não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo,
sem motivo grave »: 80 quando se aproxima a morte, as
pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas
obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se
preparar com plena consciência para o encontro definitivo
com Deus.
Feitas
estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus
Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja
Católica, confirmo
que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto
morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa
humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e
sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição
da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.
82
A
eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia
própria do suicídio ou do homicídio.
66.
Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o
homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção
gravemente má. 83 Embora certos condicionalismos
psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um
gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de
cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade
subjectiva, o suicídio, sob
o perfil objectivo, é um acto gravemente imoral, porque
comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos
deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as
várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no
seu conjunto. 84 No seu núcleo mais profundo, o suicídio
constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a
vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do
antigo Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes o poder da
vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de
lá os tirais » (Sab 16,
13; cf. Tob 13,
2).
Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a
realizá-la mediante o chamado « suicídio assistido »,
significa fazer-se colaborador e, por vezes, autor em
primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser
justificada, nem sequer quando requerida. « Nunca é lícito —
escreve com admirável actualidade Santo Agostinho — matar o
outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse,
porque, suspenso entre a vida e a morte, suplica ser ajudado
a libertar a alma que luta contra os laços do corpo e deseja
desprender-se; nem é lícito sequer quando o doente já não
estivesse em condições de sobreviver ». 85 Mesmo quando não
é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem
sofre, a eutanásia deve designar-se uma falsa
compaixão, antes uma preocupante « perversão » da mesma:
a verdadeira « compaixão », de facto, torna solidário com a
dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode suportar
o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da
eutanásia, quando é realizado por aqueles que — como os
parentes — deveriam assistir com paciência e amor o seu
familiar, ou por quantos — como os médicos —, pela sua
específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive
nas condições terminais mais penosas.
A
decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se
configura como um homicídio, que
os outros praticam sobre uma pessoa que não a pediu de modo
algum nem deu nunca qualquer consentimento para a mesma.
Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça,
quando alguns, médicos ou legisladores, se arrogam o poder
de decidir quem deve viver e quem deve morrer. Aparece assim
reproposta a tentação do Éden: tornar-se como Deus «
conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn 3,
5). Mas, Deus é o único que tem o poder de fazer morrer e de
fazer viver: « Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32,
39; cf. 2 Re 5,
7; 1 Sam 2,
6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um
desígnio de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal
poder, subjugado por uma lógica insensata e egoísta, usa-o
inevitavelmente para a injustiça e a morte. Assim, a vida do
mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na sociedade,
perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a
confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica
entre as pessoas.
67.
Bem diverso, ao contrário, é o caminho
do amor e da verdadeira compaixão, que
nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé em
Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com novas
razões. A súplica que brota do coração do homem no confronto
supremo com o sofrimento e a morte, especialmente quando é
tentado a fechar-se no desespero e como que a aniquilar-se
nele, é sobretudo uma petição de companhia, solidariedade e
apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a
esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos
recordou o Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o
enigma da condição humana mais se adensa » para o homem; e,
todavia, « a intuição do próprio coração fá-lo acertar,
quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o
desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de
eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria,
insurge-se contra a morte ». 86
Esta
repugnância natural da morte e este germe de esperança na
imortalidade são iluminadas e levadas à plenitude pela fé
cristã, que promete e oferece a participação na vitória de
Cristo Ressuscitado: é a vitória d'Aquele que, pela sua
morte redentora, libertou o homem da morte, « salário do
pecado » (Rm 6,
23), e lhe deu o Espírito, penhor de ressurreição e de vida
(cf. Rm 8,
11). A certeza da imortalidade futura e a esperança
na ressurreição prometida projectam
uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e
infundem no crente uma força extraordinária para se
abandonar ao desígnio de Deus.
O
apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença
total ao Senhor que abraça qualquer condição humana: «
Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para
si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos,
para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos,
pertencemos ao Senhor » (Rm 14,
7-8). Morrer
para o Senhor significa
viver a própria morte como acto supremo de obediência ao Pai
(cf. Fil 2,
8), aceitando encontrá-la na « hora » querida e escolhida
por Ele (cf. Jo 13,
1), o único que pode dizer quando está cumprido o caminho
terreno. Viver
para o Senhor significa
também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si
mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de
bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com amor, na
participação, por dom gratuito de Deus e por livre opção
pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado. Deste
modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais
plenamente configurado com Ele (cf. Fil 3,
10; 1 Ped 2,
21) e intimamente associado à sua obra redentora a favor da
Igreja e da humanidade. 87 É esta experiência do Apóstolo,
que toda a pessoa que sofre é chamada a viver: « Alegro-me
nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na
minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu
Corpo, que é a Igreja » (Col1, 24).
«
Importa mais obedecer a Deus do que aos homens » (Act 5,
29): a
lei civil e a lei moral
68.
Uma das características dos actuais atentados à vida humana
— como já se disse várias vezes — é a tendência para exigir
a sua legitimação
jurídica, como
se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em
certas condições, reconhecer aos cidadãos e,
consequentemente, a pretensão da execução dos mesmos com a
assistência segura e gratuita dos médicos e restantes
profissionais da saúde.
Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não
nasceu ou está gravemente debilitado, seria um bem
simplesmente relativo: teria de ser confrontada e ponderada
com outros bens, segundo uma lógica proporcionalista ou de
puro cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se encontra na
situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que
poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por
conseguinte, unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a
moralidade da sua escolha. Por isso, e no interesse da
convivência civil e da harmonia social, o Estado deveria
respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e
a eutanásia.
Outras
vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos
os cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade mais
elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e
condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a
opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e
reconhecer-lhes também, pelo menos em certos casos extremos,
o direito ao aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás, a
proibição e a punição dos referidos actos conduziria
inevitavelmente — assim o dizem — a um aumento de práticas
clandestinas: e estas escapariam ao necessário controlo
social e seriam realizadas sem a devida segurança médica. E
interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que não é
concretamente aplicável não significaria, em última análise,
minar também a autoridade de qualquer outra lei.
Nas
opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que, numa
sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a
cada pessoa total autonomia para dispor da própria vida e da
vida de quem ainda não nasceu: não seria competência da lei
fazer a escolha entre as diversas opiniões morais, e menos
ainda poderia ela pretender impor uma opinião particular em
detrimento das outras.
69.
Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha
amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o
ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se
a registar e acolher as convicções da maioria e,
consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo
que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se,
depois, se chega a pensar que uma verdade comum e objectiva
seria realmente inacessível, então o respeito pela liberdade
dos cidadãos — que, num regime democrático, são considerados
os verdadeiros soberanos — exigiria que, a nível
legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência de
cada um e, por conseguinte, ao estabelecer aquelas normas
que são absolutamente necessárias à convivência social, se
adequassem exclusivamente à vontade da maioria, fosse ela
qual fosse. Desta maneira, todo o político deveria separar
claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o
do comportamento público.
Em
consequência disto, registam-se duas tendências que na
aparência são diametralmente opostas. Por um lado, os
indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia
moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem
imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o
espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo
como único limite externo não lesar o espaço de autonomia a
que cada um dos outros cidadãos também tem direito. Mas por
outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas
e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha
obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções
para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos,
que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único
critério moral no exercício das próprias funções aquilo que
está estabelecido pelas mesmas leis. Deste modo, a
responsabilidade da pessoa é delegada na lei civil com a
abdicação da própria consciência moral, pelo menos no âmbito
da acção pública.
70.
Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo
ético, que
caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta
quem pense que tal relativismo seja uma condição da
democracia, visto que só ele garantiria tolerância, respeito
recíproco entre as pessoas e adesão às decisões da maioria,
enquanto as normas morais, consideradas objectivas e
vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas é
exactamente a problemática conexa com o respeito da vida que
mostra os equívocos e contradições, com terríveis resultados
práticos, que se escondem nesta posição.
É
verdade que a história regista casos de crimes cometidos em
nome da « verdade ». Mas crimes não menos graves e negações
radicais da liberdade foram também cometidos e cometem-se em
nome do « relativismo ético ». Quando uma maioria
parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação,
mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não
nascida, porventura não assume uma decisão « tirânica »
contra o ser humano mais débil e indefeso? Justamente reage
a consciência universal diante dos crimes contra a
humanidade, de que o nosso século viveu tão tristes
experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez
de terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem
legitimados por consenso popular?
Não se
pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da
moralidade ou a panaceia da imoralidade. Fundamentalmente, é
um « ordenamento » e, como tal, um instrumento, não um fim.
O seu carácter « moral » não é automático, mas depende da
conformidade com a lei moral, à qual se deve submeter como
qualquer outro comportamento humano: por outras palavras,
depende da moralidade dos fins que persegue e dos meios que
usa. Regista-se hoje um consenso quase universal sobre o
valor da democracia, o que há-de ser considerado um positivo
« sinal dos tempos », como o Magistério da Igreja já várias
vezes assinalou. 88 Mas, o valor da democracia vive ou morre
nos valores que ela encarna e promove: fundamentais e
imprescindíveis são certamente a dignidade de toda a pessoa
humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e
inalienáveis, e bem assim a assunção do « bem comum » como
fim e critério regulador da vida política.
Na
base destes valores, não podem estar « maiorias » de opinião
provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei
moral objectiva que, enquanto « lei natural » inscrita no
coração do homem, seja ponto normativo de referência para a
própria lei civil. Quando, por um trágico obscurecimento da
consciência colectiva, o cepticismo chegasse a pôr em dúvida
mesmo os princípios fundamentais da lei moral, então o
próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus
fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação
empírica dos diversos e contrapostos interesses. 89
Alguém
poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função
reguladora fosse de apreciar em vista da paz social. Mesmo
reconhecendo qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é
difícil não ver que, sem um ancoradouro moral objectivo, a
democracia não pode assegurar uma paz estável, até porque é
ilusória a paz não fundada sobre os valores da dignidade de
cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos
próprios regimes de democracia representativa, de facto, a
regulação dos interesses é frequentemente feita a favor dos
mais fortes, sendo estes os mais competentes para manobrar
não apenas as rédeas do poder, mas também a formação dos
consensos. Em tal situação, facilmente a democracia se torna
uma palavra vazia.
71.
Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã
democracia, urge, pois, redescobrir a existência de valores
humanos e morais essenciais e congénitos, que derivam da
própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a
dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma
maioria e nenhum Estado poderá jamais criar, modificar ou
destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e
promover.
Importa retomar, neste sentido, os elementos
fundamentais da visão das relações entre lei civil e lei
moral, tal
como os propõe a Igreja, mas que fazem parte também do
património das grandes tradições jurídicas da humanidade.
Certamente, a
função da lei civil é
diversa e de âmbito mais limitado que a da lei moral. De
facto, « em nenhum âmbito da vida, pode a lei civil
substituir-se à consciência, nem pode ditar normas naquilo
que ultrapassa a sua competência », 90 que é assegurar o bem
comum das pessoas, mediante o reconhecimento e defesa dos
seus direitos fundamentais, a promoção da paz e da
moralidade pública. 91 Com efeito, a função da lei civil
consiste em garantir uma convivência social na ordem e
justiça verdadeira, para que todos « tenhamos vida tranquila
e sossegada, com toda a piedade e honestidade » (1 Tm 2,
2). Por isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os
membros da sociedade o respeito de alguns direitos
fundamentais, que pertencem por natureza à pessoa e que
qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro
e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de
todo o ser humano inocente. Se a autoridade pública pode, às
vezes, renunciar a reprimir algo que, se proibido,
provocaria um dano maior, 92 ela não poderá nunca aceitar
como direito dos indivíduos — ainda que estes sejam a
maioria dos membros da sociedade —, a ofensa infligida a
outras pessoas através do menosprezo de um direito tão
fundamental como o da vida. A tolerância legal do aborto ou
da eutanásia não pode, de modo algum, fazer apelo ao
respeito pela consciência dos outros, precisamente porque a
sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os
abusos que se possam verificar em nome da consciência e com
o pretexto da liberdade. 93
A este
propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem
in terris: «
Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste sobretudo no
respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois,
o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido que
esses direitos sejam reconhecidos, respeitados,
harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais
fácil o cumprimento dos respectivos deveres. "A função
primordial de qualquer poder público é defender os direitos
invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos
seus deveres". Por isso mesmo, se a autoridade não
reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde
ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão
privadas de qualquer valor jurídico ». 94
72.
Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a
doutrina da necessidade da
lei civil se conformar com a lei moral, como
se vê na citada encíclica de João XXIII: « A autoridade é
exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os
governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa
ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e
essas prescrições não podem obrigar a consciência dos
cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de
existir, degenerando em abuso do poder ». 95 O mesmo
ensinamento aparece claramente em S. Tomás de Aquino, que
escreve: « A lei humana tem valor de lei enquanto está de
acordo com a recta razão: derivando, portanto, da lei
eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e,
como tal, não tem valor, mas é um acto de violência ». 96 E
ainda: « Toda a lei constituída pelos homens tem força de
lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao
contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei
natural, então não é lei mas sim corrupção da lei ». 97
Ora, a
primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz
respeito à lei humana que menospreza o direito fundamental e
primordial à vida, direito próprio de cada homem. Assim, as
leis que legitimam a eliminação directa de seres humanos
inocentes, por meio do aborto e da eutanásia, estão em
contradição total e insanável com o direito inviolável à
vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de
todos perante a lei. Poder-se-ia objectar que é diverso o
caso da eutanásia, quando pedida em plena consciência pelo
sujeito interessado. Mas um Estado que legitimasse tal
pedido, autorizando a sua realização, estaria a legalizar um
caso de suicídio-homicídio, contra os princípios
fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de
cada vida inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do
respeito pela vida e abre-se a estrada a comportamentos
demolidores da confiança nas relações sociais.
As
leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia
colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do
indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte,
carecem totalmente de autêntica validade jurídica. De facto,
o menosprezo do direito à vida, exactamente porque leva a
eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua
razão de existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e
irreparavelmente à possibilidade de realizar o bem comum.
Segue-se daí que, quando uma lei civil legitima o aborto ou
a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira
lei civil, moralmente obrigatória.
73. O
aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei
humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não
criam obrigação alguma para a consciência, como, ao
contrário, geram uma grave
e precisa obrigação de opor-se a elas através da objecção de
consciência. Desde
os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos
cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas
legitimamente constituídas (cf. Rm 13,
1-7; 1
Ped 2,
13-14), mas, ao mesmo tempo, advertiu firmemente que «
importa mais obedecer a Deus do que aos homens » (Act 5,
29). Já no Antigo Testamento e a propósito de ameaças contra
a vida, encontramos um significativo exemplo de resistência
à ordem injusta da autoridade. As parteiras dos hebreus
opuseram-se ao Faraó, que lhes tinha dado a ordem de matarem
todos os rapazes por ocasião do parto. « Não cumpriram a
ordem do rei do Egipto, e deixaram viver os rapazes » (Ex 1,
17). Mas há que salientar o motivo profundo deste seu
comportamento: «
As parteiras temiam a Deus » (Ex 1,
17). É precisamente da obediência a Deus — o único a Quem se
deve aquele temor que significa reconhecimento da sua
soberania absoluta — que nascem a força e a coragem de
resistir às leis injustas dos homens. É a força e a coragem
de quem está disposto mesmo a ir para a prisão ou a ser
morto à espada, na certeza de que nisto « está a paciência e
a fé dos Santos » (Ap 13,
10).
Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como
aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito
conformar-se com ela, « nem participar numa campanha de
opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a
aprovação com o próprio voto ». 98
Um
particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos
em que o voto parlamentar fosse determinante para favorecer
uma lei mais restritiva, isto é, tendente a restringir o
número dos abortos autorizados, como alternativa a uma lei
mais permissiva já em vigor ou posta a votação. Não são
raros tais casos. Sucede, com efeito, que, enquanto,
nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a
introdução de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes
apoiadas por organismos internacionais poderosos, noutras
nações, pelo contrário — particularmente naquelas que já
fizeram a amarga experiência de tais legislações permissivas
—, vão-se manifestando sinais de reconsideração. No caso
hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar
completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta
oposição pessoal ao aborto fosse clara e conhecida de todos,
poderia licitamente oferecer o próprio apoio a propostas que
visassem limitar
os danos de
uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito
da cultura e da moralidade pública. Ao proceder assim, de
facto, não se realiza a colaboração ilícita numa lei
injusta; mas cumpre-se, antes, uma tentativa legítima e
necessária para limitar os seus aspectos iníquos.
74. A
introdução de legislações injustas põe frequentemente os
homens moralmente rectos frente a difíceis problemas de
consciência em matéria de colaboração, por causa da
imperiosa afirmação do próprio direito de não ser obrigado a
participar em acções moralmente más. Às vezes, as opções que
se impõem tomar, são dolorosas e podem requerer o sacrifício
de posições profissionais consolidadas ou a renúncia a
legítimas perspectivas de promoção na carreira. Noutros
casos, pode acontecer que o cumprimento de algumas acções,
em si mesmas indiferentes ou mesmo até positivas, previstas
no articulado de legislações globalmente injustas, consinta
a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro
lado, pode-se justamente temer que a disponibilidade a
realizar tais acções não só provoque um escândalo e favoreça
o enfraquecimento da oposição necessária aos atentados
contra a vida, como insensivelmente induza também a
conformar-se cada vez mais com uma lógica permissiva.
Para
iluminar esta difícil questão moral, é preciso recorrer aos
princípios gerais referentes àcooperação em acções
moralmente más. Os
cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados,
sob grave dever de consciência, a não prestar a sua
colaboração formal em acções que, apesar de admitidas pela
legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus. Na
verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar
formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se quando a
acção realizada, pela sua própria natureza ou pela
configuração que tem assumido num contexto concreto, se
qualifica como participação directa num acto contra a vida
humana inocente ou como aprovação da intenção moral do
agente principal. Tal cooperação nunca pode ser justificada
invocando o respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no
facto de que a lei civil a prevê e requer: com efeito, nos
actos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma
responsabilidade moral, à qual ninguém poderá jamais
subtrair-se e sobre a qual cada um será julgado pelo próprio
Deus (cf. Rm 2,
6; 14, 12).
Recusar a própria participação para cometer uma injustiça é
não só um dever moral, mas também um direito humano basilar.
Se assim não fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir
uma acção intrinsecamente incompatível com a sua dignidade
e, desse modo, ficaria radicalmente comprometida a sua
própria liberdade, cujo autêntico sentido e fim reside na
orientação para a verdade e o bem. Trata-se, pois, de um
direito essencial que, precisamente como tal, deveria estar
previsto e protegido pela própria lei civil. Nesse sentido,
a possibilidade de se recusar a participar na fase
consultiva, preparatória e executiva de semelhantes actos
contra a vida, deveria ser assegurada aos médicos, aos
outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos
hospitais, clínicas e casas de saúde. Quem recorre à
objecção de consciência deve ser salvaguardado não apenas de
sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal,
disciplinar, económico e profissional.
«
Amarás ao teu próximo como a ti mesmo » (Lc 10,
27): « promove
» a vida
75. Os
mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida. Os
preceitos morais negativos, isto
é, aqueles que declaram moralmente inaceitável a escolha de
uma determinada acção, têm um valor absoluto para a
liberdade humana: valem sempre e em todas as circunstâncias,
sem excepção. Indicam que a escolha de determinado
comportamento é radicalmente incompatível com o amor a Deus
e com a dignidade da pessoa, criada à sua imagem: por isso,
tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer
intenção ou consequência, está em contraste insanável com a
comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão fundamental
de orientar a própria vida para Deus. 99
Já
neste sentido, os preceitos morais negativos têm uma função
positiva importantíssima: o "não" que exigem
incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do
qual o homem livre não pode descer, e simultaneamente indica
o mínimo que ele deve respeitar e do qual deve partir para
pronunciar inumeráveis « sins », capazes de cobrir
progressivamente todo
o horizonte do bem (cf.Mt 5,
48), em cada um dos seus âmbitos. Os mandamentos, de modo
particular os preceitos morais negativos, são o início e a
primeira etapa necessária do caminho da liberdade: « A
primeira liberdade — escreve Santo Agostinho — consiste em
estar isento de crimes (...), como seja o homicídio, o
adultério, a fornicação, o roubo, a fraude, o sacrilégio, e
assim por diante. Quando alguém começa a não ter estes
crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a
cabeça para a liberdade, mas isto é apenas o início da
liberdade, não a liberdade perfeita ». 100
76. O
mandamento « não matarás » estabelece, pois, o ponto de
partida de um caminho de verdadeira liberdade, que nos leva
a promover activamente a vida e a desenvolver determinadas
atitudes e comportamentos ao seu serviço: procedendo assim,
exercemos a nossa responsabilidade para com as pessoas que
nos estão confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o
nosso reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida (cf. Sal 139
138, 13-14).
O
Criador confiou a vida do homem à sua solicitude
responsável, não para que disponha arbitrariamente dela mas
a guarde com sabedoria e administre com amorosa fidelidade.
O Deus da Aliança confiou a vida de cada homem ao homem, seu
irmão, segundo a lei da reciprocidade no dar e no receber,
no dom de si e no acolhimento do outro. Na plenitude dos
tempos, o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo
homem, mostrou a altura e profundidade a que pode chegar
esta lei da reciprocidade. Com o dom do seu Espírito, Cristo
dá conteúdos e significados novos à lei da reciprocidade, à
entrega do homem ao homem. O Espírito, que é artífice de
comunhão no amor, cria entre os homens uma nova fraternidade
e solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de recíproca
doação e acolhimento próprios da Santíssima Trindade. O
próprio Espírito torna-Se a lei nova, que dá força aos
crentes e apela à sua responsabilidade para viverem
reciprocamente o dom de si e o acolhimento do outro,
participando no próprio amor de Jesus Cristo e segundo a sua
medida.
77.
Animado e plasmado por esta lei nova está também o
mandamento que diz « não matarás ». Para o cristão, isto
implica, em última análise, o imperativo de respeitar, amar
e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as
dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. « Ele deu a Sua
vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos »
(1 Jo 3,
16).
O
mandamento « não matarás », inclusive nos seus conteúdos
mais positivos de respeito, amor e promoção da vida humana,
vincula todo o homem. De facto, ressoa na consciência moral
de cada um como um eco irreprimível da aliança primordial de
Deus criador com o homem; todos o podem conhecer pela luz da
razão e observar pela obra misteriosa do Espírito que,
soprando onde quer (cf.Jo 3,
8), alcança e inspira todo o homem que vive neste mundo.
Constitui, portanto, um serviço de amor, aquele que todos
estamos empenhados em assegurar ao nosso próximo, para que a
sua vida seja defendida e promovida sempre, mas sobretudo
quando é mais débil ou ameaçada. É uma solicitude pessoal
mas também social, que todos devemos cultivar, pondo o
respeito incondicional da vida humana como fundamento de uma
sociedade renovada.
É-nos
pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e de cada
mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem, para
que, no nosso tempo atravessado por demasiados sinais de
morte, se instaure finalmente uma nova cultura da vida,
fruto da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV
A MIM O FIZESTES
POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
« Vós
sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as suas
obras maravilhosas » (1
Ped 2, 9): o
povo da vida e pela vida
78. A
Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria
e de salvação. Recebeu-o em dom de Jesus, que foi enviado
pelo Pai « para anunciar a Boa Nova aos pobres » (Lc 4,
18). Recebeu-o através dos Apóstolos, que o Mestre enviou
pelo mundo inteiro (cf. Mc 16,
15; Mt 28,
19-20). Nascida desta acção missionária, a Igreja ouve
ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de
incitamento apostólico: « Ai de mim se não evangelizar! » (1
Cor 9, 16). «
Evangelizar — como escrevia Paulo VI — constitui, de facto, a
graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda
identidade. Ela
existe para evangelizar ». 101
A
evangelização é uma acção global e dinâmica que envolve a
Igreja na sua participação da missão profética, sacerdotal e
real do Senhor Jesus. Por isso, a evangelização compreende
indivisivelmenteas dimensões do anúncio, da celebração e
do serviço da caridade. É
um acto
profundamente eclesial, que
compromete todos os operários do Evangelho, cada um segundo
os seus carismas e o próprio ministério.
O
mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho
da vida, parte
integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós estamos ao
serviço deste Evangelho, amparados na certeza de o termos
recebido em dom e de sermos enviados a proclamá-lo a toda a
humanidade, « até aos confins do mundo » (Act 1,
8). Por isso, grata e humildemente conservamos a consciência
de ser opovo da vida e pela vida e
assim nos apresentamos diante de todos.
79.
Somos o povo
da vida, porque
Deus, no seu amor generoso, deu-nos o Evangelho
da vida e,
por este mesmo Evangelho, fomos transformados e salvos.
Fomos reconquistados pelo « Príncipe da vida » (Act 3,
15), com o preço do seu sangue precioso (cf. 1
Cor 6, 20; 7,
23; 1 Ped 1,
19), e, pelo banho baptismal, fomos enxertados n'Ele (cf. Rm 6,
4-5; Col 2,
12) como ramos que recebem seiva e fecundidade da única
árvore (cf. Jo 15,
5). Interiormente renovados pela graça do Espírito, « Senhor
que dá a vida », tornámo-nos um povo
pela vida, e
como tal somos chamados a comportar-nos.
Somos
enviados: estar
ao serviço da vida não é para nós um título de glória, mas
um dever que nasce da consciência de sermos « o povo
adquirido por Deus para proclamar as suas obras maravilhosas
» (cf. 1 Ped 2,
9). No nosso caminho, guia-nos
e anima-nos a lei do amor: um
amor, cuja fonte e modelo é o Filho de Deus feito homem que
« pela sua morte deu a vida ao mundo ». 102
Somos
enviados como povo. O
compromisso de servir a vida incumbe sobre todos e cada um.
É uma responsabilidade tipicamente « eclesial », que exige a
acção concertada e generosa de todos os membros e estruturas
da comunidade cristã. Mas a sua característica de dever
comunitário não elimina nem diminui a responsabilidade de cada
pessoa, a
quem é dirigido o mandamento do Senhor de « fazer-se próximo
» de todo o homem: « Vai e faz tu também do mesmo modo » (Lc 10,
37).
Todos
juntos sentimos o dever de anunciar
o Evangelho da vida, de o
celebrar na
liturgia e na existência inteira, de o
servir com as
diversas iniciativas e estruturas de apoio e promoção.
« O
que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos » (1
Jo 1, 3): anunciar
o Evangelho da vida
80. «
O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com
os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos
apalparam acerca do Verbo da vida (...) isso vos anunciamos,
para que também vós tenhais comunhão connosco » (1 Jo 1,
1.3). Jesus é
o único Evangelho: Ele
é tudo o que temos para dizer e testemunhar.
O
próprio anúncio de Jesus é anúncio da vida. Ele,
de facto, é o « Verbo da vida » (1 Jo 1,
1). N'Ele, « a vida manifestou-se » (1 Jo 1,
2); melhor, Ele mesmo é a « vida eterna que estava no Pai e
que nos foi manifestada » (1 Jo 1,
2). Esta mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi
comunicada ao homem. Orientada para a vida em plenitude — a
« vida eterna » —, também a vida terrena de cada um adquire
o seu sentido pleno.
Iluminados pelo Evangelho
da vida, sentimos
a necessidade de o proclamar e testemunhar pelasurpreendente
novidade que
o caracteriza: identificando-se com o próprio Jesus,
portador de toda a novidade 103 e vencedor daquele «
envelhecimento » que provém do pecado e conduz à morte, 104
este Evangelho supera toda a expectativa do homem e revela a
grandeza excelsa, a que a dignidade da pessoa é elevada pela
graça. Assim a contempla S. Gregório de Nissa: « Quando
comparado com os outros seres, o homem nada vale, é pó,
erva, ilusão; mas, uma vez adoptado como filho pelo Deus do
universo, é feito familiar deste Ser, cuja excelência e
grandeza ninguém pode ver, ouvir nem compreender. Com que
palavra, pensamento ou arroubo de espírito poderemos
celebrar a superabundância desta graça? O homem supera a sua
natureza: de mortal passa a imortal, de perecível a
imperecível, de efémero a eterno, de homem torna-se deus ».
105
A
gratidão e a alegria por esta dignidade incomensurável do
homem incitam-nos a tornar os demais participantes desta
mensagem: « O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para
que também vós tenhais comunhão connosco » (1 Jo 1,
3). É necessário fazer chegar o Evangelho
da vida ao
coração de todo o homem e mulher, e inseri-lo nas pregas
mais íntimas do tecido da sociedade inteira.
81.
Trata-se em primeiro lugar de anunciar o
núcleo deste
Evangelho: é o anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos
chama a uma profunda comunhão Consigo e nos abre à esperança
segura da vida eterna; é a afirmação do laço indivisível que
existe entre a pessoa, a sua vida e a própria corporeidade;
é a apresentação da vida humana como vida de relação, dom de
Deus, fruto e sinal do seu amor; é a proclamação da
extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que
permite reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é
a indicação do « dom sincero de si » como tarefa e lugar de
plena realização da própria liberdade.
Importa, depois, mostrar todas as
consequências deste
mesmo Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana,
dom precioso de Deus, é sagrada e inviolável, e, por isso
mesmo, o aborto provocado e a eutanásia são absolutamente
inaceitáveis; a vida do homem não apenas não deve ser
eliminada, mas há-de ser protegida com toda a atenção e
carinho; a vida encontra o seu sentido no amor recebido e
dado, em cujo horizonte haurem plena verdade a sexualidade e
a procriação humana; nesse amor, até mesmo o sofrimento e a
morte têm um sentido, podendo tornar-se acontecimentos de
salvação, não obstante perdurar o mistério que os envolve; o
respeito pela vida exige que a ciência e a técnica estejam
sempre orientadas para o homem e para o seu desenvolvimento
integral; a sociedade inteira deve respeitar, defender e
promover a dignidade de toda a pessoa humana, em cada
momento e condição da sua vida.
82.
Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida,
temos de propor, com constância e coragem, estes conteúdos,
desde o primeiro anúncio do Evangelho, e, depois, na
catequese e nas diversas formas de pregação, no diálogo
pessoal e em toda a acção educativa. Aos
educadores, professores, catequistas e teólogos, incumbe o
dever de pôr em destaque as razões
antropológicas que
fundamentam e apoiam o respeito de cada vida humana. Desta
forma, ao mesmo tempo que faremos resplandecer a original
novidade do Evangelho
da vida, poderemos
ajudar os demais a descobrirem, inclusive à luz da razão e
da experiência, como a mensagem cristã ilumina plenamente o
homem e o significado do seu ser e existir; encontraremos
valiosos pontos de encontro e diálogo também com os não
crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma nova
cultura da vida.
Cercados pelas vozes mais constrastantes, enquanto muitos
rejeitam a sã doutrina sobre a vida do homem, sentimos
dirigida a nós a recomendação de Paulo a Timóteo: « Prega a
palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende,
censura e exorta com bondade e doutrina » (2 Tm 4,
2). Com particular vigor, há-de ressoar esta exortação no
coração de quantos na Igreja, mais directamente e a diverso
título, participam da sua missão de « mestra » da verdade.
Ressoe, antes de mais, em nós, Bispos, que
somos os primeiros a quem é pedido tornar-se incansável
anunciador doEvangelho da vida; está-nos
confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão
íntegra e fiel do ensinamento proposto nesta Encíclica, e de
recorrer às medidas mais oportunas para que os fiéis sejam
preservados de toda a doutrina contrária ao mesmo. Havemos
de dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas, aos
Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí
seja comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da
sã doutrina. 106 A exortação de Paulo seja também ouvida por
todos os teólogos,
pastores e
quantos desempenham tarefas de ensino,
catequese e formação das consciências: cientes
do papel que lhes cabe, não assumam nunca a grave
responsabilidade de atraiçoar a verdade e a própria missão,
expondo ideias pessoais contrárias ao Evangelho
da vida, que
o Magistério fielmente propõe e interpreta.
Quando
anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a oposição e a
impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade
que nos conformem com a mentalidade deste mundo (cf. Rm12,
2). Com a força recebida de Cristo, que venceu o mundo pela
sua morte e ressurreição (cf. Jo16,
33), devemos estar no
mundo, mas
não ser do
mundo (cf. Jo 15,
19; 17, 16).
« Eu
Vos louvo porque me fizestes como um prodígio »
(Sal 139
138, 14): celebrar
o Evangelho da vida
83.
Enviados ao mundo como « povo pela vida », o nosso anúncio
deve tornar-se também uma
verdadeira e própria celebração do Evangelho da vida. É
precisamente esta celebração, com toda a força evocativa dos
seus gestos, símbolos e ritos, que se torna o lugar mais
precioso e significativo para transmitir a beleza e a
grandeza desse Evangelho.
Para
isso, urge, antes de mais, cultivar, em
nós e nos outros, um
olhar contemplativo. 107 Este nasce da fé no Deus da
vida, que criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sal 139
138, 14). É o olhar de quem observa a vida em toda a sua
profundidade, reconhecendo nela as dimensões de
generosidade, beleza, apelo à liberdade e à
responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se
da realidade, mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas
as coisas o reflexo do Criador e em cada pessoa a sua imagem
viva (cf. Gn 1,
27; Sal 8,
6). Este olhar não se deixa cair em desânimo à vista daquele
que se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às
portas da morte; mas deixa-se interpelar por todas estas
situações procurando nelas um sentido, sendo, precisamente
em tais circunstâncias, que se apresenta disponível para ler
de novo no rosto de cada pessoa um apelo ao entendimento, ao
diálogo, à solidariedade.
É
tempo de todos assumirem este olhar, tornando-se novamente
capazes de venerar
e honrar cada homem, com
ânimo repleto de religioso assombro, como nos convidava a
fazer Paulo VI numa das suas mensagens natalícias. 108
Animado por este olhar contemplativo, o povo novo dos
redimidos não pode deixar de prorromper em hinos
de alegria, louvor e gratidão pelo dom inestimável da vida, pelo
mistério do chamamento de todo o homem a participar, em
Cristo, na vida da graça e numa existência de comunhão sem
fim com Deus Criador e Pai.
84. Celebrar
o Evangelho da vida significa celebrar o Deus da vida, o
Deus que dá a vida: «
Nós devemos celebrar a Vida eterna, da qual procede qualquer
outra vida. Dela recebe a vida, na proporção das respectivas
capacidades, todo o ser que, de algum modo, participa da
vida. Essa Vida divina, que está acima de qualquer vida,
vivifica e conserva a vida. Toda a vida e qualquer movimento
vital procedem desta Vida que transcende cada vida e cada
princípio de vida. A Ela devem as almas a sua
incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela, todos
os animais e todas as plantas que recebem da vida um eco
mais débil. Aos homens, seres compostos de espírito e
matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos acontece
abandoná-la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo
homem, converte-nos e chama-nos a Si. E mais... Promete
também conduzir-nos — alma e corpo — à vida perfeita, à
imortalidade. É demasiado pouco dizer que esta Vida é viva:
Ela é Princípio de vida, Causa e Fonte única de vida. Todo o
vivente deve contemplá-la e louvá-la: é Vida que transborda
de vida ». 109
Como o
Salmista, também nós, na oração
diária individual
e comunitária, louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai que
nos plasmou no seio materno, viu-nos e amou-nos quando
estávamos ainda em embrião (cf. Sal 139
138, 13.15-16), e exclamamos, com alegria irreprimível: « Eu
Vos louvo porque me fizestes como um prodígio; as vossas
obras são admiráveis, conheceis a sério a minha alma » (Sal 139
138, 14). Sim, « esta vida mortal, não obstante as suas
aflições, os seus mistérios obscuros, os seus sofrimentos, a
sua fatal caducidade, é um facto belíssimo, um prodígio
sempre original e enternecedor, um acontecimento digno de
ser cantado com júbilo e glória ». 110 Mais, o homem e a sua
vida não se revelam apenas como um dos prodígios mais altos
da criação: Deus conferiu ao homem uma dignidade quase
divina (cf. Sal 8,
6-7). Em cada criança que nasce e em cada homem que vive ou
morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós
celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus vivo,
ícone de Jesus Cristo.
Somos
chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida
em dom e a acolher, saborear e comunicar o Evangelho
da vida, não
só através da oração pessoal e comunitária, mas sobretudo
com as celebrações
do ano litúrgico. No
mesmo contexto, há que recordar, de modo particular, osSacramentos, sinais
eficazes da presença e acção salvadora do Senhor Jesus na
existência cristã: tornam os homens participantes da vida
divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária
para realizarem plenamente o verdadeiro significado do
viver, do sofrer e do morrer. Graças a uma genuína
descoberta do sentido dos ritos e à sua adequada
valorização, as celebrações litúrgicas, sobretudo as
sacramentais, serão capazes de exprimir cada vez melhor a
verdade plena acerca do nascimento, da vida, do sofrimento e
da morte, ajudando a viver estas realidades como
participação no mistério pascal de Cristo morto e
ressuscitado.
85. Na
celebração do Evangelho
da vida, é
preciso saber apreciar
e valorizar também os gestos e os símbolos, de que são ricas
as diversas tradições e costumes culturais dos povos. Trata-se
de momentos e formas de encontro, pelos quais, nos diversos
países e culturas, se manifesta a alegria pela vida que
nasce, o respeito e defesa de cada existência humana, o
cuidado por quem sofre ou passa necessidade, a solidariedade
com o idoso ou o moribundo, a partilha da tristeza de quem
está de luto, a esperança e o desejo da imortalidade.
Nesta
perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos Cardeais no
Consistório de 1991, proponho que se celebre anualmente um Dia
em defesa da Vida, nas
diversas Nações, à semelhança do que já se verifica por
iniciativa de algumas Conferências Episcopais. É necessário
que essa ocorrência seja preparada e celebrada com a activa
participação de todas as componentes da Igreja local. O seu
objectivo principal é suscitar nas consciências, nas
famílias, na Igreja e na sociedade, o reconhecimento do
sentido e valor da vida humana em todos os seus momentos e
condições, concentrando a atenção de modo especial na
gravidade do aborto e da eutanásia, sem contudo transcurar
os outros momentos e aspectos da vida que merecem ser, de
vez em quando, tomados em atenta consideração, conforme a
evolução da situação histórica sugerir.
86. Em
coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12,
1), a celebração doEvangelho da vida requer
a sua concretização sobretudo na existência
quotidiana, vivida
no amor pelos outros e na doação de si próprio. Assim, toda
a nossa existência tornar-se-á acolhimento autêntico e
responsável do dom da vida e louvor sincero e agradecido a
Deus que nos fez esse dom. É o que sucede já com tantos e
tantos gestos de doação, frequentemente humilde e escondida,
cumpridos por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens
e idosos, sãos e doentes.
É
neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem também
os gestos
heróicos. Estes
são acelebração mais solene do Evangelho da vida, porque
o proclamam com
o dom total de si; são
a manifestação refulgente do mais elevado grau de amor, que
é dar a vida pela pessoa amada (cf. Jo15,
13); são a participação no mistério da Cruz, na qual Jesus
revela quão grande valor tem para Ele a vida de cada homem e
como esta se realiza em plenitude no dom sincero de si. Além
dos factos clamorosos, existe o heroísmo do quotidiano,
feito de pequenos ou grandes gestos de partilha que
alimentam uma autêntica cultura da vida. Entre estes gestos,
merece particular apreço a doação de órgãos feita, segundo
formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma
possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já
sem esperança.
A tal
heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso,
mas tão fecundo e eloquente, de « todas as mães corajosas,
que se dedicam sem reservas à própria família, que sofrem ao
dar à luz os próprios filhos, e depois estão prontas a
abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios,
para lhes transmitir quanto de melhor elas conservam em si
». 111 No cumprimento da sua missão, « nem sempre estas mães
heróicas encontram apoio no seu ambiente. Antes, os modelos
de civilização, com frequência promovidos e propagados pelos
meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome
do progresso e da modernidade, são apresentados como já
superados os valores da fidelidade, da castidade e do
sacrifício, nos quais se distinguiram e continuam a
distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...)
Nós vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível!
Nós vos agradecemos a intrépida confiança em Deus e no seu
amor. Nós vos agradecemos o sacrifício da vossa vida. (...)
Cristo, no Mistério Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe
fizestes. Ele, de facto, tem o poder de vos restituir a
vida, que Lhe levastes em oferenda ». 112
« De
que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não
tiver obras? » (Tg 2,
14):servir o Evangelho da vida
87. Em
virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e
a promoção da vida humana devem actuar-se através do serviço
da caridade, que
se exprime no testemunho pessoal, nas diversas formas de
voluntariado, na animação social e no compromisso político.
Trata-se de uma
exigência sobremaneira premente na hora actual, em
que a « cultura da morte » se contrapõe à « cultura da vida
», de forma tão forte que muitas vezes parece levar a
melhor. Antes ainda, porém, trata-se de uma exigência que
nasce da « fé que actua pela caridade » (Gal 5,
6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: « De que
aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver
obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma
irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um
de vós lhe disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos",
sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes
aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, é
morta em si mesma » (2, 14-17).
No
serviço da caridade, há uma
atitude que nos há-de animar e caracterizar: devemos
cuidar do outro enquanto pessoa confiada por Deus à nossa
responsabilidade. Como discípulos de Jesus, somos chamados a
fazermo-nos próximo de cada homem (cf. Lc 10,
29-37), reservando uma preferência especial a quem vive mais
pobre, sozinho e necessitado. É precisamente através da
ajuda prestada ao faminto, ao sedento, ao estrangeiro, ao
nu, ao doente, ao encarcerado — como também à criança ainda
não nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte —,
que temos a possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo
declarou: « Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos
mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40). Por
isso, não podemos deixar de nos sentir interpelados e
julgados por esta página sempre actual de S. João
Crisóstomo: « Queres honrar o corpo de Cristo? Não O
transcures quando se encontrar nu! Não vale prestares honras
aqui no templo com tecidos de seda, e depois transcurá-Lo lá
fora, onde sofre frio e nudez ». 113
O serviço
da caridade a favor da vida deve ser profundamente unitário: não
pode tolerar unilateralismos e discriminações, já que a vida
humana é sagrada e inviolável em todas as suas fases e
situações; é um bem indivisível. Trata-se de «cuidar
» da vida toda e da vida de todos. Ou
melhor ainda e mais profundamente, trata-se de ir até às
próprias raízes da vida e do amor.
Partindo exactamente deste amor profundo por todo o homem e
mulher, foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma extraordinária
história de caridade, que
introduziu, na vida eclesial e civil, numerosas estruturas
de serviço à vida, que suscitam a admiração até do
observador menos prevenido. É uma história que cada
comunidade cristã deve, com renovado sentido de
responsabilidade, continuar a escrever graças a uma múltipla
acção pastoral e social. Neste sentido, é preciso criar
formas discretas mas eficazes de acompanhamento
da vida nascente, prestando
uma especial solidariedade àquelas mães que, mesmo privadas
do apoio do pai, não temem trazer ao mundo o seu filho e
educá-lo. Cuidado análogo deve ser reservado à vida provada
pela marginalização ou pelo sofrimento, de forma particular
nas suas etapas finais.
88.
Tudo isto comporta uma obra
educativa paciente
e corajosa, que estimule todos e cada um a carregar os
fardos dos outros (cf. Gal 6,
2); requer uma contínua promoção das vocações
ao serviço, particularmente
entre os jovens; implica a realização de projectos
e iniciativas concretas,
sólidas e inspiradas evangelicamente.
Múltiplos são os instrumentos
a valorizar por
um empenho competente e sério. Relativamente às fontes da
vida, sejam promovidos os
centros com os métodos naturais de regulação da fertilidade, como
válida ajuda à paternidade e maternidade responsável, na
qual cada pessoa, a começar do filho, é reconhecida e
respeitada por si mesma, e cada decisão é animada e guiada
pelo critério do dom sincero de si. Também os consultórios
matrimoniais e familiares, através
da sua acção específica de consulta e prevenção,
desenvolvida à luz de uma antropologia coerente com a visão
cristã da pessoa, do casal e da sexualidade, constituem um
precioso serviço para descobrir o sentido do amor e da vida,
e para apoiar e assistir cada família na sua missão de «
santuário da vida ». Ao serviço da vida nascente, estão
ainda os
centros de ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças
à sua acção, tantas mães-solteiras e casais em dificuldade
readquirem razões e convicções, e encontram assistência e
apoio para superar contrariedades e medos no acolhimento de
uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz.
Diante
da vida condicionada por dificuldades, extravio, doença ou
marginalização, outros instrumentos — como as
comunidades para a recuperação dos toxicodependentes, os
lares para abrigo de menores ou dos doentes mentais, os
centros para acolhimento e tratamento dos doentes da SIDA,
as Cooperativas de solidariedade sobretudo para inválidos — são
expressões eloquentes daquilo que a caridade sabe inventar
para dar novas razões de esperança e possibilidades
concretas de vida a cada um.
Quando, depois, a existência terrena se encaminha para o seu
termo, é ainda a caridade que encontra as modalidades mais
oportunas para os idosos, sobretudo
se não-autosuficientes, e os chamados doentes
terminais poderem
gozar de uma assistência verdadeiramente humana e receber
respostas adequadas às suas exigências, especialmente à sua
angústia e solidão. Nestes casos, é insubstituível o papel
das famílias; mas estas podem encontrar grande ajuda nas
estruturas sociais de assistência e, quando necessário, no
recurso aos cuidados
paliativos, valendo-se
para o efeito dos idóneos serviços clínicos e sociais, sejam
os existentes nos edifícios públicos de internamento e
tratamento, sejam os disponíveis para apoio no domicílio.
Em
particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais, das clínicas e
das casas de
saúde: a sua
verdadeira identidade não é a de serem apenas estruturas
onde se cuida dos enfermos e doentes terminais, mas e
primariamente ambientes nos quais o sofrimento, a dor e a
morte sejam reconhecidos e interpretados no seu significado
humano e especificamente cristão. De modo especial, tal
identidade deve manifestar-se clara e eficientemente nas instituições
dependentes de religiosos ou, de alguma maneira, ligadas à
Igreja.
89.
Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as
demais iniciativas de apoio e solidariedade, que as diversas
situações poderão sugerir em cada ocasião, precisam de ser
animados por pessoas
generosamente disponíveis e profundamente conscientes de
quão decisivo seja oEvangelho da vida para
o bem do indivíduo humano e da sociedade.
Peculiar é a responsabilidade confiada aos profissionais da
saúde — médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães,
religiosos e religiosas, administradores e voluntários: a
sua profissão pede-lhes que sejam guardiães e servidores da
vida humana. No actual contexto cultural e social, em que a
ciência e a arte médica correm o risco de extraviar-se da
sua dimensão ética originária, podem ser às vezes fortemente
tentados a transformarem-se em fautores de manipulação da
vida, ou mesmo até em agentes de morte. Perante tal
tentação, a sua responsabilidade é hoje muito maior e
encontra a sua inspiração mais profunda e o apoio mais forte
precisamente na intrínseca e imprescindível dimensão ética
da profissão clínica, como já reconhecia o antigo e sempre
actual juramento
de Hipócrates, segundo
o qual é pedido a cada médico que se comprometa no respeito
absoluto da vida humana e da sua sacralidade.
O
respeito absoluto de cada vida humana inocente exige
inclusivamente o exercício
da objecção de consciência frente
ao aborto provocado e à eutanásia. O « fazer morrer » nunca
pode ser considerado um cuidado médico, nem mesmo quando a
intenção fosse apenas a de secundar um pedido do paciente:
pelo contrário, é a própria negação da profissão médica, que
se define como um apaixonado e vigoroso « sim » à vida.
Também a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de
novos e grandes benefícios para a humanidade, deve sempre
rejeitar experiências, investigações ou aplicações que,
menosprezando a dignidade inviolável do ser humano, deixam
de estar ao serviço dos homens para se transformarem em
realidades que, parecendo socorrê-los, efectivamente os
oprimem.
90. Um
papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas
empenhadas no voluntariado:oferecem um contributo
precioso ao serviço da vida, quando sabem conjugar
capacidade profissional com um amor generoso e gratuito. O Evangelho
da vida impele-as
a elevarem os sentimentos de simples filantropia até à
altura da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por
entre fadigas e cansaços, a consciência da dignidade de cada
homem; a irem à procura das carências das pessoas, iniciando
— se necessário — novos caminhos em lugares onde a
necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos
consistentes.
O
realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho
da vida seja
servido ainda por meio deformas de animação social e de
empenho político, que
defendam e proponham o valor da vida nas nossas sociedades
cada vez mais complexas e pluralistas. Indivíduos,
famílias, grupos, entidades associativas têm
a sua responsabilidade, mesmo se a título e com método
diverso, na animação social e na elaboração de projectos
culturais, económicos, políticos e legislativos que, no
respeito de todos e segundo a lógica da convivência
democrática, contribuam para edificar uma sociedade, onde a
dignidade de cada pessoa seja reconhecida e tutelada, e a
vida de todos fique tutelada e promovida.
Semelhante tarefa incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis
da vida pública. Chamados
a servir o homem e o bem comum, têm o dever de realizar
opções corajosas a favor da vida, primeiro que tudo, no
âmbito das disposições
legislativas. Num
regime democrático, onde as leis e as decisões se
estabelecem sobre a base do consenso de muitos, pode
atenuar-se na consciência dos indivíduos investidos de
autoridade o sentido da responsabilidade pessoal. Mas
ninguém pode jamais abdicar desta responsabilidade,
sobretudo quando tem um mandato legislativo ou poder
decisório que o chama a responder perante Deus, a própria
consciência e a sociedade inteira de opções eventualmente
contrárias ao verdadeiro bem comum. Se as leis não são o
único instrumento para defender a vida humana, desempenham,
contudo, um papel muito importante, por vezes determinante,
na promoção de uma mentalidade e dos costumes. Afirmo, uma
vez mais, que uma norma que viola o direito natural de um
inocente à vida, é injusta e, como tal, não pode ter valor
de lei. Por isso, renovo o meu veemente apelo a todos os
políticos para não promulgarem leis que, ao menosprezarem a
dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria convivência
social.
A
Igreja sabe que é difícil actuar uma defesa legal eficaz da
vida no contexto das democracias pluralistas, por causa da
presença de fortes correntes culturais de matriz diversa.
Todavia, movida pela certeza de que a verdade moral não pode
deixar de ter eco no íntimo de cada consciência, ela
encoraja os políticos — a começar pelos que são cristãos — a
não se renderem, mas tomarem aquelas decisões que, tendo em
conta as possibilidades concretas, levem a restabelecer uma
ordem justa na afirmação e promoção do valor da vida. Nesta
perspectiva, convém sublinhar que não basta eliminar as leis
iníquas. Mas terão de ser removidas as causas que favorecem
os atentados contra a vida, sobretudo garantindo o devido
apoio à família e à maternidade: a
política familiar deve
constituir o
ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para
isso, é necessário activar iniciativas sociais e
legislativas, capazes de garantir condições de autêntica
liberdade de escolha em ordem à paternidade e à maternidade;
impõe-se, além disso, reordenar as políticas do emprego, de
urbanização, da habitação, dos serviços sociais, para se
conseguir conciliar entre si os tempos do trabalho e da
família, tornando possível um efectivo cuidado das crianças
e dos idosos.
91. Um
capítulo importante da política em favor da vida é
constituído hoje pela problemática
demográfica. As
autoridades públicas têm certamente a responsabilidade de
intervir com válidas iniciativas « para orientar a
demografia da população »; 114 mas tais iniciativas devem
pressupor e respeitar sempre a responsabilidade primária e
inalienável dos esposos e das famílias, e não podem recorrer
a métodos desrespeitadores da pessoa e dos seus direitos
fundamentais, a começar pelo direito à vida de todo o ser
humano inocente. Por isso, é moralmente inaceitável que,
para regular a natalidade, se encoraje ou até imponha o uso
de meios como a contracepção, a esterilização e o aborto.
Bem
diferentes são os caminhos para resolver o problema
demográfico: os Governos e as várias instituições
internacionais devem, antes de tudo, visar a criação de
condições económicas, sociais, médico-sanitárias e culturais
que permitam aos esposos realizarem as suas opções
procriadoras, com plena liberdade e verdadeira
responsabilidade; devem esforçar-se, depois, por « aumentar
os meios e distribuir com maior justiça a riqueza, para que
todos possam participar equitativamente dos bens da criação.
São necessárias soluções a nível mundial, que instaurem uma
verdadeira economia
de comunhão e participação de bens, tanto
na ordem internacional como nacional ». 115 Esta é a única
estrada que respeita a dignidade das pessoas e das famílias,
como também o autêntico património cultural dos povos.
Vasto
e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho
da vida. Ele
manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e favorável
para uma efectiva colaboração com os irmãos das outras
Igrejas e Comunidades eclesiais, na linha daquele ecumenismo
das obras que
o Concílio Vaticano II, com autoridade, encorajou. 116 Além
disso, o referido serviço apresenta-se como espaço
providencial para o diálogo e colaboração com os sequazes de
outras religiões e com todos os homens de boa vontade: a
defesa e a promoção da vida não são monopólio de ninguém,
mas tarefa e responsabilidade de todos. O
desafio que temos pela frente, na vigília do terceiro
milénio, é árduo: somente a cooperação concorde de todos
aqueles que acreditam no valor da vida, poderá evitar uma
derrota da civilização com consequências imprevisíveis.
« Os
filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo
do Senhor » (Sal 127
126, 3): a
família « santuário da vida »
92. No
seio do « povo da vida e pela vida », resulta
decisiva a responsabilidade da família: é
uma responsabilidade que brota da própria natureza dela —
uma comunidade de vida e de amor, fundada sobre o matrimónio
— e da sua missão que é « guardar, revelar e comunicar o
amor ». 117 Em causa está o próprio amor de Deus, do qual os
pais são constituídos colaboradores e como que intérpretes
na transmissão da vida e na educação da mesma segundo o seu
projecto de Pai. 118 É, por conseguinte, o amor que se faz
generosidade, acolhimento, doação: na família, cada um é
reconhecido, respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém
está mais necessitado, maior e mais diligente é o cuidado
por ele.
A
família tem a ver com os seus membros durante toda a
existência de cada um, desde o nascimento até à morte. Ela é
verdadeiramente « o santuário
da vida (...),
o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente
acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está
exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um
crescimento humano autêntico ». 119 Por isso, o papel da
família é determinante
e insubstituível na construção da
cultura da vida.
Como igreja
doméstica, a
família é chamada a anunciar, celebrar e servir o Evangelho
da vida.Esta tríplice função compete primariamente aos
cônjuges, chamados a serem transmissores da vida, apoiados
numa consciência sempre
renovada do
sentido da geração, enquanto
acontecimento onde, de modo privilegiado, se manifesta que a
vida humana é um dom recebido a fim de, por sua vez, ser
dado. Na
geração de uma nova vida, eles tomam consciência de que o
filho « se é fruto da recíproca doação de amor dos pais, é,
por sua vez, um dom para ambos: um dom que promana do dom ».
120
A
família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho
da vida, principalmente
através daeducação dos filhos. Pela
palavra e pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas opções
quotidianas, e mediante gestos e sinais concretos, os pais
iniciam os seus filhos na liberdade autêntica, que se
realiza no dom sincero de si, e cultivam neles o respeito do
outro, o sentido da justiça, o acolhimento cordial, o
diálogo, o serviço generoso, a solidariedade e os demais
valores que ajudam a viver a existência como um dom. A obra
educadora dos pais cristãos deve constituir um serviço à fé
dos filhos e prestar uma ajuda para eles cumprirem a vocação
recebida de Deus. Entra na missão educadora dos pais ensinar
e testemunhar aos filhos o verdadeiro sentido do sofrimento
e da morte: podê-lo-ão fazer se souberem estar atentos a
todo o sofrimento existente ao seu redor e, antes ainda, se
souberem desenvolver atitudes de solidariedade, assistência
e partilha com doentes e idosos no âmbito familiar.
93.
Além disso, a família celebra
o Evangelho da vida com
a oração
diária, individual
e familiar: nela, agradece e louva o Senhor pelo dom da vida
e invoca luz e força para enfrentar os momentos de
dificuldade e sofrimento, sem nunca perder a esperança. Mas
a celebração que dá significado a qualquer outra forma de
oração e de culto é a que se exprime na existência
quotidiana da família,quando esta é uma existência feita
de amor e doação.
A
celebração transforma-se assim num serviço
ao Evangelho da vida, que
se exprime através dasolidariedade, vivida
no seio e ao redor da família como atenção carinhosa,
vigilante e cordial nas acções pequenas e humildes de cada
dia. Uma expressão particularmente significativa de
solidariedade entre as famílias é a disponibilidade para a adopção ou
para o acolhimento das
crianças abandonadas pelos seus pais ou, de qualquer modo,
em situação de grave dificuldade. O verdadeiro amor paterno
e materno sabe ir além dos laços da carne e do sangue para
acolher também crianças de outras famílias, oferecendo-lhes
quanto seja necessário para a sua vida e o seu pleno
desenvolvimento. Entre as formas de adopção, merece ser
assinalada a
adopção à distância,que se há-de preferir sempre que o
abandono tenha por único motivo as condições de grave
pobreza da família. Na realidade, com esta espécie de
adopção é oferecida aos pais a ajuda necessária para manter
e educar os próprios filhos, sem ter de os desarraigar do
seu ambiente natural.
Concebida como « determinação firme e perseverante de se
empenhar pelo bem comum », 121 a solidariedade requer ser
também concretizada mediante formas de participação
social e política.Consequentemente, servir o Evangelho
da vida implica
que as famílias, nomeadamente tomando parte em apropriadas
associações, se empenhem por que as leis e as instituições
do Estado não lesem de modo algum o direito à vida, desde a
sua concepção até à morte natural, mas o defendam e
promovam.
94. Um
lugar especial há-de ser reconhecido aos idosos. Enquanto,
nalgumas culturas, a pessoa de mais idade permanece inserida
na família com um papel activo importante, noutras, ao
contrário, quem chegou à velhice é sentido como um peso
inútil e fica abandonado a si mesmo: em tal contexto, pode
mais facilmente surgir a tentação de recorrer à eutanásia.
A
marginalização ou mesmo a rejeição dos idosos é intolerável.
A sua presença na família ou, pelo menos, a estreita
solidariedade desta com eles quando, pelo reduzido espaço da
habitação ou outros motivos, essa presença não fosse
possível, é de importância fundamental para criar um clima
de intercâmbio recíproco e de comunicação enriquecedora
entre as várias idades da vida. Por isso, é importante que
se conserve, ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma
espécie de « pacto » entre as gerações, de modo que os pais
idosos, chegados ao termo da sua caminhada, possam encontrar
nos filhos aquele acolhimento e solidariedade que lhes
tinham oferecido quando estes estavam a desabrochar para a
vida: exige-o a obediência ao mandamento divino que ordena
honrar o pai e a mãe (cf. Ex 20,
12; Lv 19,
3). Mas há mais... O idoso não há-de ser considerado apenas
objecto de atenção, solidariedade e serviço. Também ele tem
um valioso contributo a prestar ao Evangelho
da vida. Graças
ao rico património de experiência adquirido ao longo dos
anos, o idoso pode e deve ser transmissor
de sabedoria, testemunha de esperança e de caridade.
Se é
verdade que « o futuro da humanidade passa pela família »,
122 tem-se de reconhecer que as actuais condições sociais,
económicas e culturais frequentemente tornam mais árdua e
penosa a tarefa da família ao serviço da vida. Para poder
realizar a sua vocação de « santuário da vida », enquanto
célula de uma sociedade que ama e acolhe a vida, é
necessário e urgente que a família
como tal seja ajudada e apoiada. As
sociedades e os Estados devem assegurar todo o apoio
necessário, mesmo económico, para que as famílias possam
responder de forma mais humana aos próprios problemas. Por
seu lado, a Igreja deve promover incansavelmente uma
pastoral familiar capaz de ajudar cada família a
redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no que diz
respeito ao Evangelho
da vida.
«
Comportai-vos como filhos da luz » (Ef 5, 8): para realizar
uma viragem cultural
95. «
Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o que é
agradável ao Senhor, e não participeis das obras infrutuosas
das trevas » (Ef 5,
8.10-11). No contexto social de hoje, marcado por uma luta
dramática entre a « cultura da vida » e a « cultura da morte
», importa maturar
um forte sentido crítico, capaz
de discernir os verdadeiros valores e as autênticas
exigências.
Urge
uma mobilização
geral das consciências e
um esforço
ético comum, para
se actuar umagrande estratégia a favor da vida. Todos
juntos devemos construir uma nova cultura da vida:nova,
porque em condições de enfrentar e resolver os problemas
inéditos de hoje acerca da vida do homem; nova, porque
assumida com convicção mais firme e laboriosa por todos os
cristãos; nova, porque capaz de suscitar um sério e corajoso
confronto cultural com todos. A urgência desta viragem
cultural está ligada à situação histórica que estamos a
atravessar, mas radica-se sobretudo na própria missão
evangelizadora confiada à Igreja. De facto, o Evangelho visa
« transformar a partir de dentro e fazer nova a própria
humanidade »; 123 é como o fermento que leveda toda a massa
(cf.Mt 13,
33) e, como tal, é destinado a permear todas as culturas e a
animá-las a partir de dentro, 124 para que exprimam a
verdade integral sobre o homem e sua vida.
Tem-se
de começar por renovar
a cultura da vida no seio das próprias comunidades cristãs.Muitas
vezes os crentes, mesmo até os que participam activamente na
vida eclesial, caiem numa espécie de dissociação entre a fé
cristã e as suas exigências éticas a propósito da vida,
chegando assim ao subjectivismo moral e a certos
comportamentos inaceitáveis. Devemos, pois, interrogar-nos,
com grande lucidez e coragem, acerca da cultura da vida que
reina hoje entre os indivíduos cristãos, as famílias, os
grupos e as comunidades das nossas Dioceses. Com igual
clareza e decisão, teremos de individuar os passos que somos
chamados a dar para servir a vida na plenitude da sua
verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um confronto sério
e profundo com todos, inclusive com os não crentes, sobre os
problemas fundamentais da vida humana, tanto nos lugares da
elaboração do pensamento, como nos diversos âmbitos
profissionais e nas situações onde se desenrola diariamente
a existência de cada um.
96. O
primeiro e fundamental passo para realizar esta viragem
cultural consiste na formação
da consciência moral acerca
do valor incomensurável e inviolável de cada vida humana.
Suma importância tem aqui a descoberta
do nexo indivisível entre vida e liberdade. São
bens inseparáveis: quando um é violado, o outro acaba por o
ser também. Não há liberdade verdadeira, onde a vida não é
acolhida nem amada; nem há vida plena senão na liberdade.
Ambas as realidades têm, ainda, um peculiar e natural ponto
de referência que as une indissoluvelmente: a vocação ao
amor. Este, enquanto sincero dom de si, 125 é o sentido mais
verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa.
Na
formação da consciência, igualmente decisiva é a descoberta
do laço constitutivo que une a liberdade à verdade. Como
disse já várias vezes, o desarraigar a liberdade da verdade
objectiva torna impossível fundar os direitos da pessoa
sobre uma base racional sólida, e cria as premissas para se
afirmar, na sociedade, o arbítrio desenfreado dos indivíduos
ou o totalitarismo repressivo do poder público. 126
Então
é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da
sua condição de criatura que recebe de Deus o ser e a vida
como dom e tarefa: só admitindo esta inata dependência no
seu ser, pode o homem realizar em plenitude a vida e a
liberdade própria e, simultaneamente, respeitar em toda a
sua profundidade a vida e a liberdade alheia. É sobretudo
aqui que se manifesta como, « no centro de cada cultura,
está o comportamento que o homem assume diante do mistério
maior: o mistério de Deus ». 127 Quando se nega Deus e se
vive como se Ele não existisse ou de qualquer modo não se
tem em conta os seus mandamentos, então facilmente se acaba
por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa humana
e a inviolabilidade da sua vida.
97. À
formação da consciência está estritamente ligada a obra
educativa, que
ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introdu-lo sempre
mais profundamente na verdade, orienta-o para um crescente
respeito da vida, forma-o nas justas relações entre as
pessoas.
De
modo particular, é necessário educar para o valor da vida,a
começar das suas próprias raízes.É uma ilusão pensar que
se pode construir uma verdadeira cultura da vida humana, se
não se ajudam os jovens a compreender e a viver a
sexualidade, o amor e a existência inteira no seu
significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A
sexualidade, riqueza da pessoa toda, « manifesta o seu
significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor ».
128 A banalização da sexualidade conta-se entre os
principais factores que estão na origem do desprezo pela
vida nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida.
Não é possível, pois, eximir-nos de oferecer, sobretudo aos
adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação
da sexualidade e do amor, educação
essa que requer a formação
para a castidade, como
virtude que favorece a maturidade da pessoa e a torna capaz
de respeitar o significado « esponsal » do corpo.
A obra
de educação para a vida comporta a formação
dos cônjuges sobre a procriação responsável. No
seu verdadeiro significado, esta exige que os esposos sejam
dóceis ao chamamento do Senhor e vivam como fiéis
intérpretes do seu desígnio: este cumpre-se com a generosa
abertura da família a novas vidas, permanecendo em atitude
de acolhimento e de serviço à vida, mesmo quando os
cônjuges, por sérios motivos e no respeito da lei moral,
decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo
nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a
dominar as tendências do instinto e das paixões e a
respeitar as leis biológicas inscritas na pessoa de ambos. É
precisamente este respeito que torna legítimo, ao serviço da
procriação responsável, o recurso
aos métodos naturais de regulação da fertilidade: estes
têm-se aperfeiçoado progressivamente sob o ponto de vista
científico e oferecem possibilidades concretas para decisões
de harmonia com os valores morais. Uma honesta ponderação
dos resultados conseguidos deveria fazer ruir preconceitos
ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os
profissionais da saúde e da assistência social, sobre a
importância de uma adequada formação a tal respeito. A
Igreja está agradecida àqueles que, com sacrifício pessoal e
dedicação frequentemente ignorada, se empenham na pesquisa e
na difusão de tais métodos, promovendo ao mesmo tempo uma
educação dos valores morais que o seu uso supõe.
A obra
educativa não pode deixar de tomar em consideração, ainda, o
sofrimento e a morte.Na
realidade, ambos fazem parte da experiência humana, e é vão,
para além de ilusório, procurá-los reprimir ou ignorar. Ao
contrário, cada um deve ser ajudado a compreender, na
concreta e dura realidade, o seu mistério profundo. Também a
dor e o sofrimento têm um sentido e um valor, quando são
vividos em estreita ligação com o amor recebido e dado.
Nesta perspectiva, quis que se celebrasse anualmente o Dia
Mundial do Doente, fazendo
ressaltar « a índole salvífica da oferta do sofrimento, que,
vivido em comunhão com Cristo, pertence à essência mesma da
redenção ». 129 Até a morte, aliás, não é de forma alguma
aventura sem esperança: é a porta da existência que se abre
de par em par à eternidade e, para aqueles que a vivem em
Cristo, é experiência de participação no mistério da sua
morte e ressurreição.
98. Em
resumo, podemos dizer que a viragem cultural, aqui desejada,
exige de todos a coragem deassumir um novo estilo de vida que
se exprime colocando, no fundamento das decisões concretas —
a nível pessoal, familiar, social e internacional —, uma
justa escala dos valores: o
primado do ser sobre o ter, 130 da pessoa sobre as
coisas. 131 Este novo estilo de vida implica também a
passagem da
indiferença ao interesse pelo outro, a
passagem da
recusa ao seu acolhimento: os
outros não são concorrentes de quem temos de nos defender,
mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão-de
ser amados por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria
presença.
Na
mobilização por um nova cultura da vida, que ninguém se
sinta excluído: todos
têm um papel importante a desempenhar. Ao
lado da tarefa das famílias, é particularmente valiosa a
missão dosprofessores e
dos educadores. Deles
está em larga medida dependente a possibilidade de os
jovens, formados para uma autêntica liberdade, saberem
preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais
autênticos de vida, e saberem crescer no respeito e ao
serviço de cada pessoa, em família e na sociedade.
Também os
intelectuais muito
podem fazer para construir uma nova cultura da vida humana.
Responsabilidade particular cabe aos intelectuais católicos, chamados
a estarem activamente presentes nas sedes privilegiadas da
elaboração cultural, ou seja, no mundo da escola e das
universidades, nos ambientes da investigação científica e
técnica, nos lugares da criação artística e da reflexão
humanista. Alimentando o seu génio e acção na seiva límpida
do Evangelho, devem comprometer-se ao serviço de uma nova
cultura da vida, através da produção de contributos sérios,
documentados e capazes de se imporem pelos seus méritos ao
respeito e interesse de todos. Precisamente nesta
perspectiva, instituí a Pontifícia
Academia para a Vida, com
a missão de « estudar, informar e formar acerca dos
principais problemas de biomedicina e de direito, relativos
à promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação directa
que eles têm com a moral cristã e as directrizes do
Magistério da Igreja ». 132 Um contributo específico há-de
vir das Universidades,em
particular católicas, e
dos Centros,
Institutos e Comissões de bioética.
Grande
e grave é a responsabilidade dos profissionais
dos mass-media, chamados
a pugnarem por que as mensagens, transmitidas com tamanha
eficácia, sejam um verdadeiro contributo para a cultura da
vida. Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres
de vida e dar espaço aos testemunhos positivos e por vezes
heróicos de amor pelo homem; propor, com grande respeito, os
valores da sexualidade e do amor, sem contemporizar com nada
daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem. Na
leitura da realidade, hão-de recusar-se a pôr em destaque
tudo o que possa inspirar ou fazer crescer sentimentos ou
atitudes de indiferença, desprezo ou rejeição da vida. Na
escrupulosa fidelidade à verdade dos factos, eles são
chamados a conjugar num todo a liberdade de informação, o
respeito por cada pessoa e um profundo sentido de
humanidade.
99.
Nessa viragem cultural a favor da vida, as
mulheres têm
um espaço de pensamento e acção singular e talvez
determinante: compete a elas fazerem-se promotoras de um «
novo feminismo » que, sem cair na tentação de seguir modelos
« masculinizados », saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro
génio feminino em todas as manifestações da convivência
civil, trabalhando pela superação de toda a forma de
discriminação, violência e exploração.
Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio
Vaticano II, também eu dirijo às mulheres este premente
convite: « Reconciliai os homens com a vida ». 133 Vós sois
chamadas atestemunhar o sentido do amor autêntico, daquele
dom de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo
específico na relação conjugal, mas devem ser também a alma
de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da
maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela
outra pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão
particular: « A maternidade comporta uma comunhão especial
com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher.
(...) Este modo único de contacto com o novo homem que se
está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o
homem — não só para com o próprio filho, mas para com o
homem em geral — que caracteriza profundamente toda a
personalidade da mulher ». 134 Com efeito, a mãe acolhe e
leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer
no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença.
Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações
humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da
outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe
advém do facto mesmo de ser pessoa e não de outros factores,
como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a
saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a
humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível
para uma autêntica viragem cultural.
Um
pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres,
que recorrestes ao aborto. A
Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que
poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não duvida
que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil,
talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito
ainda não está sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu,
foi e permanece profundamente injusto. Mas não vos deixeis
cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes,
compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua
verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade e
confiança ao arrependimento: o Pai de toda a misericórdia
espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no
sacramento da Reconciliação. A este mesmo Pai e à sua
misericórdia, podeis com esperança confiar o vosso menino.
Ajudadas pelo conselho e pela solidariedade de pessoas
amigas e competentes, podereis contar-vos, com o vosso
doloroso testemunho, entre os mais eloquentes defensores do
direito de todos à vida. Através do vosso compromisso a
favor da vida, coroado eventualmente com o nascimento de
novos filhos e exercido através do acolhimento e atenção a
quem está mais carecido de solidariedade, sereis artífices
de um novo modo de olhar a vida do homem.
100.
Neste grande esforço por uma nova cultura da vida, somossustentados
e fortalecidos pela confiança de
quem sabe que oEvangelho da vida, como
o Reino de Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc 4,
26-29). Certamente é enorme a desproporção existente entre
os meios numerosos e potentes, de que estão dotadas as
forças propulsoras da « cultura da morte », e os meios de
que dispõem os promotores de uma « cultura da vida e do amor
». Mas nós sabemos que podemos confiar na ajuda de Deus,
para Quem nada é impossível (cf. Mt 19,
26).
Com
esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela
sorte de cada homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que
disse às famílias, empenhadas em suas difíceis tarefas por
entre as ciladas que as ameaçam: 135 é
urgente uma grande oração pela vida, que
atravesse o mundo inteiro. Com iniciativas extraordinárias e
na oração habitual, de cada comunidade cristã, de cada grupo
ou associação, de cada família e do coração de cada crente
eleve-se uma súplica veemente a Deus, Criador e amante da
vida. O próprio Jesus nos mostrou com o seu exemplo que a
oração e o jejum são as armas principais e mais eficazes
contra as forças do mal (cf. Mt 4,
1-11), e ensinou aos seus discípulos que alguns demónios só
desse modo se expulsam (cf. Mc 9,
29). Então, encontremos novamente a humildade e a coragem de orar
e jejuar, para
conseguir que a força que vem do Alto faça ruir os muros de
enganos e mentiras que escondem, aos olhos de muitos dos
nossos irmãos e irmãs, a natureza perversa de comportamentos
e de leis contrárias à vida, e abra os seus corações a
propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida e
do amor.
«
Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja
completa » (1
Jo 1, 4): o
Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens
101. «
Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria seja
completa » (1 Jo 1,
4). A revelação do Evangelho
da vida foi-nos
confiada como um bem que há-de ser comunicado a todos: para
que todos os homens estejam em comunhão connosco e com a
Santíssima Trindade (cf.1 Jo 1,
3). Nem nós poderíamos viver em alegria plena, se não
comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o guardássemos
apenas para nós.
O
Evangelho da vida não
é exclusivamente para os crentes: destina-se
a todos. A
questão da vida e da sua defesa e promoção não é
prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma
luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a cada
consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta e
apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe
seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum
este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de
um valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a
luz da razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a
todos.
Por
isso, a nossa acção de « povo da vida e pela vida » pede
para ser interpretada de modo justo e acolhida com simpatia.
Quando a Igreja declara que o respeito incondicional do
direito à vida de toda a pessoa inocente — desde a sua
concepção até à morte natural — é um dos pilares sobre o
qual assenta toda a sociedade, ela « quer simplesmente promover
um Estado humano. Um
Estado que reconheça como seu dever primário a defesa dos
direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da
mais débil ». 136
O
Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. Actuar
em favor da vida é contribuir para o renovamento
da sociedade, através
da edificação do bem comum. De facto, não é possível
construir o bem comum sem reconhecer e tutelar o direito à
vida, sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os
restantes direitos inalienáveis do ser humano. Nem pode ter
sólidas bases uma sociedade que se contradiz radicalmente,
já que por um lado afirma valores como a dignidade da
pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as
mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana,
sobretudo se débil e marginalizada. Só o respeito da vida
pode fundar e garantir bens tão preciosos e necessários à
sociedade como a democracia e a paz.
De
facto, não pode haver verdadeira
democracia, se
não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se
respeitam os seus direitos.
Nem
pode haver verdadeira
paz, se não se
defende e promove a vida, como
recordava Paulo VI: « Todo o crime contra a vida é um
atentado contra a paz, especialmente se ele viola os
costumes do povo (...), enquanto nos lugares onde os
direitos do homem são realmente professados e publicamente
reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a atmosfera feliz
e geradora de convivência social ». 137
O «
povo da vida » alegra-se de poder partilhar o seu empenho
com muitos outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o
« povo pela vida », e a nova cultura do amor e da
solidariedade possa crescer para o verdadeiro bem da cidade
dos homens.
CONCLUSÃO
102.
Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar
volta a fixar-se no Senhor Jesus, o « Menino nascido para
nós » (cf. Is 9,
5), a fim de n'Ele contemplar « a Vida » que « se manifestou
» (1 Jo 1,
2). No mistério deste nascimento, realiza-se o encontro de
Deus com o homem e tem início o caminho do Filho de Deus
sobre a terra, caminho esse que culminará com o dom da vida
na Cruz: com a sua morte, Ele vencerá a morte e tornar-Se-á
para a humanidade princípio de vida nova.
Quem
esteve a acolher « a vida » em nome e proveito de todos, foi
Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços
pessoais estreitíssimos com o Evangelho
da vida. O
consentimento de Maria, na Anunciação, e a sua maternidade
situam-se na própria fonte do mistério daquela vida, que
Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10,
10). Através do acolhimento e carinho que Ela prestou à vida
do Verbo feito carne, a vida do homem foi salva da
condenação à morte definitiva e eterna.
Por
isso, « como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de
todos os que renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a
Mãe da Vida que faz viver todos os homens; ao gerar a Vida,
gerou de certo modo todos aqueles que haviam de viver dessa
Vida ». 138
Ao
contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o
sentido da própria maternidade e o modo como é chamada a
exprimi-la. Ao mesmo tempo, a experiência materna da Igreja
entreabre uma perspectiva mais profunda para compreender a
experiência de Maria, qual modelo
incomparável de acolhimento e cuidado da vida.
«
Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol
» (Ap 12,
1): a
maternidade de Maria e da Igreja
103. A
relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja
manifesta-se claramente no « grande sinal » descrito no
Apocalipse: « Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher
revestida de Sol, tendo a Lua debaixo dos seus pés e uma
coroa de doze estrelas sobre a cabeça » (12, 1). Neste
sinal, a Igreja reconhece uma imagem do próprio mistério:
apesar de imersa na história, ela está consciente de a
transcender, porquanto constitui na terra « o germe e o
princípio » do Reino de Deus. 139 Tal mistério, a Igreja
vê-o realizado, de modo pleno e exemplar, em Maria. É Ela a
mulher gloriosa, na qual o desígnio de Deus se pôde actuar
com a máxima perfeição.
Aquela
« mulher revestida de Sol » — assinala o Livro do Apocalipse
— « estava grávida » (12, 2). A Igreja está plenamente
consciente de trazer em si o Salvador do mundo, Cristo
Senhor, e de ser chamada a dá-Lo ao mundo, regenerando os
homens para a própria vida de Deus. Mas não pode esquecer
que esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de
Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é « Deus de Deus
», « Deus verdadeiro de Deus verdadeiro ». Maria é
verdadeiramente a Mãe de Deus, a Theotokos, em
cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo, a vocação
à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria
apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a «
nova Eva », mãe dos crentes, mãe dos « viventes » (cf. Gn 3,
20).
A
maternidade espiritual da Igreja só se realiza — também
disto está ciente a Igreja — no meio das ânsias e « dores de
parto » (Ap 12,
2), isto é, em perene tensão com as forças do mal, que
continuam a sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens,
que opõem resistência a Cristo: « N'Ele estava a Vida e a
Vida era a luz dos homens; a luz resplandece nas trevas, mas
as trevas não a acolheram » (Jo 1,
4-5).
À
semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua
maternidade sob o signo do sofrimento: « Este Menino está
aqui (...) para ser sinal de contradição; uma espada
trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos
de muitos corações » (Lc 2,
34-35). Nas palavras que Simeão dirige a Maria, já no
alvorecer da existência do Salvador, está sinteticamente
representada aquela rejeição de Jesus — e com Ele a rejeição
de Maria —, que culmina no Calvário. « Junto da cruz de
Jesus » (Jo19, 25), Maria participa no dom que o
Filho faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O
definitivamente para nós. O « sim » do dia da Anunciação
amadurece plenamente no dia da Cruz, quando chega para Maria
o tempo de acolher e gerar como filho cada homem feito
discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: «
Então Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que
Ele amava, Jesus disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu
filho" » (Jo 19,
26).
« O
dragão deteve-se diante da mulher (...) para lhe devorar o
filho que estava para nascer »(Ap 12,
4): a vida
ameaçada pelas forças do mal
104.
No Livro do Apocalipse, o « grande sinal » da « mulher »
(12, 1) é acompanhado por « outro sinal no céu »: « um
grande dragão vermelho » (12, 3), que representa Satanás,
potência pessoal maléfica, e conjuntamente todas as forças
do mal que agem na história e contrariam a missão da Igreja.
Também
nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de facto, a
hostilidade das forças do mal é uma obstinada oposição que,
antes de tocar os discípulos de Jesus, se dirige contra a
sua Mãe. Para salvar a vida do Filho daqueles que O temem
como se fosse uma perigosa ameaça, Maria tem de fugir com
José e o Menino para o Egipto (cf. Mt 2,
13-15).
Assim,
Maria ajuda a Igreja a tomar
consciência de que a vida está sempre no centro de uma
grande luta entre
o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O dragão queria
devorar « o filho que estava para nascer » (Ap 12,
4), figura de Cristo, que Maria gera na « plenitude dos
tempos » (Gal4, 4) e que a Igreja deve continuamente
oferecer aos homens nas sucessivas épocas da história. Mas é
também, de algum modo, figura de cada homem, de cada
criança, sobretudo de cada criatura débil e ameaçada, porque
— como recorda o Concílio — « pela sua encarnação, Ele, o
Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ». 140
Precisamente na « carne » de cada homem, Cristo continua a
revelar-Se e a entrar em comunhão connosco, pelo que a rejeição
da vida do homem,nas suas diversas formas, é realmente rejeição
de Cristo. Esta
é a verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos
manifesta e que a sua Igreja incansavelmente propõe: « Quem
receber um menino como este, em meu nome, é a Mim que recebe
» (Mt 18,
5); « Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes »
(Mt 25,
40).
« Não
mais haverá morte » (Ap 21,
4): o
esplendor da ressurreição
105. A
anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas
expressões tranquilizadoras: « Não tenhas receio, Maria » e
« Nada é impossível a Deus » (Lc 1,
30.37). Na verdade, toda a existência da Virgem Mãe está
envolvida pela certeza de que Deus está com Ela e A
acompanha com a sua benevolência providente. O mesmo se
passa também com a existência da Igreja que encontra « um
refúgio » (cf. Ap 12,
6) no deserto, lugar da provação mas também da manifestação
do amor de Deus pelo seu povo (cf. Os 2,
16). Maria é uma mensagem de viva consolação para a Igreja
na sua luta contra a morte. Ao mostrar-nos o seu Filho,
assegura-nos que n'Ele as forças da morte já foram vencidas:
« Morte e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo
após a morte ». 141
O
Cordeiro imolado vive
com os sinais da paixão, no esplendor da ressurreição. Só
Ele domina todos os acontecimentos da história: abre os seus
« selos » (cf. Ap 5,
1-10) e consolida, no tempo e para além dele, o
poder da vida sobre a morte. Na
« nova Jerusalém », ou seja, no mundo novo para o qual tende
a história dos homens, «
não mais haverá morte, nem
pranto, nem gritos, nem dor, por que as primeiras coisas
passaram » (Ap 21,
4).
Como
povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto
caminhamos confiantes para « um novo céu e uma nova terra »
(Ap 21,
1), voltamos o olhar para Aquela que é para nós « sinal de
esperança segura e consolação ». 142
Ó
Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa
da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da
vida.
Alcançai-lhes a graça de o
acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o
celebrar com
gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o
testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março,
solenidade da Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo
sétimo de Pontificado.
IOANNES PAULUS PP. II
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