
CARTA ENCÍCLICA
FIDES ET RATIO
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA
SOBRE AS RELAÇÕES
ENTRE FÉ E RAZÃO

O Divino
Espírito Santo.
www.obradoespiritosanto.com
Venerados Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!
A fé e
a razão (fides et ratio) constituem como que as duas
asas pelas quais o espírito humano se eleva para a
contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do
homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise,
de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O,
possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33,
18; Sal 2726,
8-9; 6362, 2-3;Jo 14,
8; 1 Jo 3,
2).
INTRODUÇÃO - «CONHECE-TE A TI MESMO »
1.
Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um
caminho que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a
encontrar-se progressivamente com a verdade e a
confrontar-se com ela. É um caminho que se realizou — nem
podia ser de outro modo — no âmbito da autoconsciência
pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo,
tanto mais se conhece a si mesmo na sua unicidade, ao mesmo
tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do
sentido das coisas e da sua própria existência. O que chega
a ser objecto do nosso conhecimento, torna-se por isso mesmo
parte da nossa vida. A recomendação conhece-te
a ti mesmo estava
esculpida no dintel do templo de Delfos, para testemunhar
uma verdade basilar que deve ser assumida como regra mínima
de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da criação
inteira, pela sua qualificação de « homem », ou seja,
enquanto «conhecedor de si mesmo ».
Aliás,
basta um simples olhar pela história antiga para ver com
toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas
partes da terra animadas por culturas diferentes, as
questões fundamentais que caracterizam o percurso da
existência humana: Quem
sou eu? Donde
venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que
existirá depois desta vida? Estas
perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas
aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos
escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de
Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de
Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos
tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões
que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que,
desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais
perguntas depende efectivamente a orientação que se imprime
à existência.
2. A
Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de
pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da
verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina
pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é «
o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14,
6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à
humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo
absolutamente peculiar: é a diaconia
da verdade. 1 Por
um lado, esta missão torna a comunidade crente participante
do esforço comum que a humanidade realiza para alcançar a
verdade, 2 e,
por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio das certezas
adquiridas, ciente todavia de que cada verdade alcançada é
apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se
há--de manifestar na última revelação de Deus: « Hoje vemos
como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos
face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então
conhecerei exactamente » (1 Cor 13,
12).
3.
Variados são os recursos que o homem possui para progredir
no conhecimento da verdade, tornando assim cada vez mais
humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia,
cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da
vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas
mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa,
segundo a etimologia grega, « amor à sabedoria ».
Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se
quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das
coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e
formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza
do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma
propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que
esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que
evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o
homem vive.
A
grande incidência que a filosofia teve na formação e
desenvolvimento das culturas do Ocidente não deve fazer-nos
esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos
de conceber a existência presentes no Oriente. Na realidade,
cada povo possui a sua própria sabedoria natural, que tende,
como autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a
maturar em formas propriamente filosóficas. Prova da verdade
de tudo isto é a existência duma forma basilar de
conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e
que se pode constatar nos próprios postulados em que as
várias legislações nacionais e internacionais se inspiram
para regular a vida social.
4.
Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo,
se escondem significados diferentes. Por isso, é necessária
uma explicitação preliminar. Impelido pelo desejo de
descobrir a verdade última da existência, o homem procura
adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam
uma melhor compreensão de si mesmo e progredir na sua
realização. Os conhecimentos fundamentais nascem da maravilha que
nele suscita a contemplação da criação: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e
relacionado com outros seres semelhantes, com quem partilha
o destino. Parte daqui o caminho que o levará, depois, à
descoberta de horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem
tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo e, pouco a
pouco, incapaz de uma existência verdadeiramente pessoal.
A
capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite
elaborar, através da actividade filosófica, uma forma de
pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica
entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um
conhecimento sistemático. Graças a tal processo,
alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em
diferentes épocas históricas, resultados que levaram à
elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento.
Historicamente isto gerou muitas vezes a tentação de
identificar uma única corrente com o pensamento filosófico
inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma
certa «soberba filosófica », que pretende arvorar em leitura
universal a própria perspectiva e visão imperfeita. Na
realidade, cada sistema filosófico,
sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer
instrumentalização, deve reconhecer a prioridade dopensar filosófico
de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.
Neste
sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os
progressos do saber, reconhecer um núcleo de conhecimentos
filosóficos, cuja presença é constante na história do
pensamento. Pense-se, só como exemplo, nos princípios de
não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na
concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na
sua capacidade de conhecer Deus, a verdade, o bem; pense-se,
além disso, em algumas normas morais fundamentais que
geralmente são aceites por todos. Estes e outros temas
indicam que, para além das correntes de pensamento, existe
um conjunto de conhecimentos, nos quais é possível ver uma
espécie de património espiritual da humanidade. É como se
nos encontrássemos perante uma filosofia
implícita, em virtude da qual cada um sente que possui
estes princípios, embora de forma genérica e não reflectida.
Estes conhecimentos, precisamente porque partilhados em
certa medida por todos, deveriam constituir uma espécie de
ponto de referência para as diversas escolas filosóficas.
Quando a razão consegue intuir e formular os princípios
primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e
coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica,
então pode-se considerar uma razão recta, ou, como era
chamada pelos antigos, orthòs
logos, recta
ratio.
5. A
Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço
da razão na consecução de objectivos que tornem cada vez
mais digna a existência pessoal. Na verdade, ela vê, na
filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais
relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera a
filosofia uma ajuda indispensável para aprofundar a
compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a
quantos não a conhecem ainda.
Na
sequência de iniciativas análogas dos meus Predecessores,
desejo também eu debruçar-me sobre esta actividade peculiar
da razão. Faço-o movido pela constatação, sobretudo em
nossos dias, de que a busca da verdade última aparece muitas
vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida, o
grande mérito de ter concentrado a sua atenção sobre o
homem. Partindo daí, uma razão cheia de interrogativos levou
por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e
profundamente. Desta forma, foram construídos sistemas de
pensamento complexos, que deram os seus frutos nos diversos
âmbitos do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura
e da história. A antropologia, a lógica, as ciências da
natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o
universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados
positivos alcançados não devem levar a transcurar o facto de
que essa mesma razão, porque ocupada a investigar de maneira
unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido de
que este é sempre chamado a voltar-se também para uma
realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um
fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa
acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados
essencialmente sobre o dado experimental, na errada
convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi
assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de
exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si
mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de
levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do
ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua
pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre
o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a
capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu
sublinhar as suas limitações e condicionalismos.
Daí
provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que
levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias
movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente,
ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar
até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter
alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar
a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que
todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos
sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança
na verdade. E esta ressalva vale também para certas
concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à
verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto
de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas
ou mesmo contraditórias entre si. Neste horizonte, tudo fica
reduzido a mera opinião. Dá a impressão de um movimento
ondulatório: enquanto, por um lado, a razão filosófica
conseguiu avançar pela estrada que a torna cada vez mais
atenta à existência humana e às suas formas de expressão,
por outro tende a desenvolver considerações existenciais,
hermenêuticas ou linguísticas, que prescindem da questão
radical relativa à verdade da vida pessoal, do ser e de
Deus. Como consequência, despontaram, não só em alguns
filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes de
desconfiança generalizada quanto aos grandes recursos
cognoscitivos do ser humano. Com falsa modéstia,
contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de
tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o
fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma,
esmoreceu a esperança de se poder receber da filosofia
respostas definitivas a tais questões.
6.
Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de
Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a necessidade da
reflexão sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi
dirigir-me a vós, venerados Irmãos no Episcopado, com quem
partilho a missão de anunciar « abertamente a verdade » (2
Cor 4, 2), e
dirigir-me também aos teólogos e filósofos a quem compete o
dever de investigar os diversos aspectos da verdade, e ainda
a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar
algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira
sabedoria, a fim de que todo aquele que tiver no coração o
amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcançar, e
nela encontrar repouso para a sua fadiga e também satisfação
espiritual.
Tomo
esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que
os Bispos, como assinala o Concílio Vaticano II, são «
testemunhas da verdade divina e católica » 3.
Por isso, testemunhar a verdade é um encargo que nos foi
confiado a nós, os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem
faltar ao ministério que recebemos. Reafirmando a verdade da
fé, podemos restituir ao homem de hoje uma genuína confiança
nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um
estímulo para poder recuperar e promover a sua plena
dignidade.
Há um
segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões Na
carta encíclica Veritatis
splendor, chamei a atenção para « algumas verdades
fundamentais da doutrina católica que, no contexto actual,
correm o risco de serem deformadas ou negadas ». 4 Com
este novo documento, desejo continuar aquela reflexão,
concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade e
sobre o seu fundamento em
relação com a fé.
De facto, não se pode negar que este período, de mudanças
rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem
pertence e de quem depende o futuro, na sensação de estarem
privados de pontos de referência autênticos. A necessidade
de um alicerce sobre o qual construir a existência pessoal e
social faz-se sentir de maneira premente, principalmente
quando se é obrigado a constatar o carácter fragmentário de
propostas que elevam o efémero ao nível de valor, iludindo
assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da
existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até
à borda do precipício, sem saber o que os espera. Isto
depende também do facto de, às vezes, quem era chamado por
vocação a exprimir em formas culturais o fruto da sua
reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o
sucesso imediato ao esforço duma paciente investigação sobre
aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que tem a grande
responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através
do apelo perene à busca da verdade, deve recuperar
vigorosamente a sua vocação originária. É por isso que senti
a necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para
que, no limiar do terceiro milénio da era cristã, a
humanidade tome consciência mais clara dos grandes recursos
que lhe foram concedidos, e se empenhe com renovada coragem
no cumprimento do plano de salvação, no qual está inserida a
sua história.
CAPÍTULO I - A REVELAÇÃO DA SABEDORIA DE DEUS
1.
Jesus, revelador do Pai
7. Na
base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a
consciência de ser depositária duma mensagem, que tem a sua
origem no próprio Deus (cf. 2
Cor 4, 1-2).
O conhecimento que ela propõe ao homem, não provém de uma
reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido
na fé a palavra de Deus (cf. 1
Tes 2, 13).
Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, único no
seu género, que assinala a abertura de um mistério escondido
durante tantos séculos (cf. 1
Cor 2, 7; Rom 16,
25-26), mas agora revelado: « Aprouve a Deus, na sua bondade
e sabedoria, revelar-Se a Si mesmo e dar a conhecer o
mistério da sua vontade (cf. Ef 1,
9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo
encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam
participantes da natureza divina ». 5 Trata-se
de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus
e vem ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto
fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e o
conhecimento que o homem adquire d'Ele leva à plenitude
qualquer outro conhecimento verdadeiro que a sua mente seja
capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência.
8.
Retomando quase literalmente a doutrina presente na
constituição Dei
Filius do
Concílio Vaticano I e tendo em conta os princípios propostos
pelo Concílio de Trento, a constituição Dei
Verbum do
Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular de compreensão
da fé, reflectindo sobre a Revelação à luz da doutrina
bíblica e de toda a tradição patrística. No primeiro
Concílio do Vaticano, os Padres tinham sublinhado o carácter
sobrenatural da revelação de Deus. A crítica racionalista
que então se fazia sentir contra a fé, baseada em teses
erradas mas muito difusas, insistia sobre a negação de
qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades
naturais da razão. Isto obrigara o Concílio a reafirmar
vigorosamente que, além do conhecimento da razão humana, por
sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um
conhecimento que é peculiar da fé. Este conhecimento exprime
uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que
Se revela, e é uma verdade certíssima porque Deus não Se
engana nem quer enganar. 6
9. Por
isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada
pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não
se confundem, nem uma torna a outra supérflua: « Existem
duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu
princípio, mas também pelo objecto. Pelo seu princípio,
porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro
fazêmo-lo por meio da fé divina; pelo objecto, porque, além
das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos
proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem
ser conhecidos se nos forem revelados do Alto ». 7
A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a
ajuda sobrenatural da graça, pertence efectivamente a uma
ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico.
De facto, este assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre
a experiência, e move-se apenas com a luz do intelecto. A
filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural,
enquanto a fé, iluminada e guiada pelo Espírito, reconhece
na mensagem da salvação a « plenitude de graça e de verdade
» (cf.Jo 1,
14) que Deus quis revelar na história, de maneira
definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo (cf. 1
Jo 5, 9; Jo 5,
31-32).
10. No
Concílio Vaticano II, os Padres, fixando a atenção sobre
Jesus revelador, ilustraram o carácter salvífico da
revelação de Deus na história e exprimiram a sua natureza do
seguinte modo: « Em virtude desta revelação, Deus invisível
(cf. Col 1,
15; 1 Tim 1,
17), na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos
(cf. Ex 33,
11; Jo 15,
14-15) e convive com eles (cf. Bar 3,
38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta
economia da Revelação realiza-se por meio de acções e
palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira
que as obras, realizadas por Deus na história da salvação,
manifestam e confirmam a doutrina e as realidades
significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez,
declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido.
Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a
respeito da salvação dos homens manifesta-se-nos, por esta
Revelação, em Cristo, que é simultaneamente o mediador e a
plenitude de toda a revelação ». 8
11.
Assim, a revelação de Deus entrou no tempo e na história.
Mais, a encarnação de Jesus Cristo realiza-se na « plenitude
dos tempos » (Gal 4,
4). À distância de dois mil anos deste acontecimento, sinto
o dever de reafirmar intensamente que, « no cristianismo, o
tempo tem uma importância fundamental ». 9 Com
efeito, é nele que tem lugar toda a obra da criação e da
salvação, e sobretudo merece destaque o facto de que, com a
encarnação do Filho de Deus, vivemos e antecipamos desde já
aquilo que se seguirá ao fim dos tempos (cf. Heb 1,
2).
A
verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e
da sua vida insere-se, portanto, no tempo e na história. Sem
dúvida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistério
de Jesus de Nazaré. Afirma-o, com palavras muito
expressivas, a constituição Dei
Verbum: « Depois de ter falado muitas vezes e de muitos
modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que
são os últimos, através de seu Filho (Heb 1,
1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo
eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os
homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cf. Jo 1,
1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem
para os homens, "fala, portanto, as palavras de Deus" (Jo 3,
34) e consuma a obra de salvação que o Pai Lhe mandou
realizar (cf. Jo 5,
36; 17, 4). Por isso, Ele — vê-l'O a Ele é ver o Pai (cf. Jo 14,
9) —, com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa,
com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a
sua morte e gloriosa ressurreição, e enfim, com o envio do
Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o
testemunho divino a Revelação ». 10
Assim,
a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de
percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada
possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à
acção incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16,
13). Ensina-o também a constituição Dei
Verbum, quando afirma que « a Igreja, no decurso dos
séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade
divina, até que nela se realizem as palavras de Deus ». 11
12. A
história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a
acção de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter connosco,
servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de
verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do
qual não conseguiríamos entender-nos.
A
encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma
síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem
sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo
esconde-se no fragmento, Deus assume o rosto do homem. Deste
modo, a verdade expressa na revelação de Cristo deixou de
estar circunscrita a um restrito âmbito territorial e
cultural, abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira
acolher como palavra definitivamente válida para dar sentido
à existência. Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de
facto, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-nos a
vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado (cf. Rom 5,
12-15). Com esta Revelação, é oferecida ao homem a verdade
última a respeito da própria vida e do destino da história:
« Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo
encarnado se esclarece verdadeiramente », afirma a
constituição Gaudium
et spes. 12 Fora
desta perspectiva, o mistério da existência pessoal
permanece um enigma insolúvel. Onde poderia o homem procurar
resposta para questões tão dramáticas como a dor, o
sofrimento do inocente e a morte, a não ser na luz que
dimana do mistério da paixão, morte e ressurreição de
Cristo?
2. A
razão perante o mistério
13.
Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação permanece
envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela
seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar
os segredos de Deus; 13 e
contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto, está
marcado sempre pelo carácter parcial e limitado da nossa
compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do mistério,
proporcionando uma sua compreensão coerente.
O
Concílio ensina que, « a Deus que revela, é devida a
obediência da fé ». 14 Com
esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade
fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que
a fé é uma resposta de obediência a Deus. Isto implica que
Ele seja reconhecido na sua divindade, transcendência e
liberdade suprema. Deus que Se dá a conhecer na autoridade
da sua transcendência absoluta, traz consigo também a
credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o homem
presta assentimento a
esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e
integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é
o próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao
homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da
comunicação interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta
e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o acto
pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela
Igreja como um momento de opção fundamental, que envolve a
pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o
melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o
sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade
pessoal. 15 Na
fé, portanto, não basta a liberdade estar presente, exige-se
que entre em acção. Mais, é a fé que permite a cada um
exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por
outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções
contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso
autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que
permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a
pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência;
de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade e
decide viver nela.
Em
auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm
também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para
conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a
mente possa autonomamente investigar inclusive dentro do
mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses sinais
dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar
dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela
justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a
transcender a sua realidade de sinais para apreender o
significado ulterior de que eles são portadores. Portanto,
já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a
mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o
próprio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da
Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a
união indivisível entre a realidade e o respectivo
significado permite identificar a profundidade do mistério.
Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e vivo,
actua pelo seu Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás,
« nada vês nem compreendes, mas t'o afirma a fé mais viva,
para além das leis da Terra. Sob espécies diferentes, que
não passam de sinais, é que está o dom de Deus ». 16 Temos
um eco disto mesmo nas seguintes palavras do filósofo
Pascal: « Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos
homens, assim a sua verdade permanece, entre as opiniões
comuns, sem diferença exterior. O mesmo se dá com a
Eucaristia relativamente ao pão comum ».17
Em
resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério; torna-o
apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial
para a vida do homem: Cristo Senhor, « na própria revelação
do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo
e descobre-lhe a sua vocação sublime », 18 que
é participar no mistério da vida trinitária de Deus. 19
14. A
doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um
horizonte verdadeiramente novo também ao saber filosófico. A
Revelação coloca dentro da história um ponto de referência
de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a
compreender o mistério da sua existência; mas, por outro
lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério
de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber
e acolher na fé. Entre estes dois momentos, a razão possui o
seu espaço peculiar que lhe permite investigar e
compreender, sem ser limitada por nada mais que a sua
finitude ante o mistério infinito de Deus.
A
Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade
universal e última que leva a mente do homem a nunca mais se
deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços do
próprio conhecimento até sentir que realizou tudo o que
estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-nos, nesta
reflexão, uma das inteligências mais fecundas e
significativas da história da humanidade, à qual
obrigatoriamente fazem referência a filosofia e a teologia:
Santo Anselmo. Na sua obra,Proslogion, o Arcebispo de
Cantuária exprime-se assim: « Detendo-me com frequência e
atenção a pensar neste problema, sucedia umas vezes que me
parecia estar para agarrar o que buscava, outras vezes, pelo
contrário, furtava-se completamente ao meu pensamento; até
que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar
de procurar algo que me era impossível encontrar. Mas,
quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua
ocupação da minha mente não me alheasse de outros problemas
de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a
apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de
mim, um dos pobres filhos de Eva, longe de Deus, o que é que
comecei a fazer e o que é que consegui? O que é que visava e
a que ponto cheguei? A que é que aspirava e por que é que
suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo acerca do
qual não se pode pensar nada de maior (non solum es quo
maius cogitari nequit), mas sois maior de tudo o que se
possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit)
(...). Se não fôsseis o que sois, poder-se-ia pensar algo
maior do que Vós, mas isso é impossível ». 20
15. A
verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de
Nazaré, permite a quemquer que seja perceber o « mistério »
da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo
que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade,
obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre
liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se
compreender plenamente esta palavra do Senhor: « Conhecereis
a verdade e a verdade libertar-vos-á » (Jo 8,
32).
A
revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o
homem, que avança por entre os condicionalismos da
mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica
tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus,
para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial de
amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de
conhecer a verdade — se ainda é capaz de ver para além de si
mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectos
— é-lhe concedida a possibilidade de recuperar a genuína
relação com a sua vida, seguindo a estrada da verdade.
Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do
Deuteronómio: « A lei que hoje te imponho não está acima das
tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para
que digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?"
Não está tão pouco do outro lado do mar, para que digas:
"Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer
ouvir para que a observemos?" Não, ela está muito perto de
ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la
» (30, 11-14). Temos um eco deste texto no famoso pensamento
do filósofo e teólogo Santo Agostinho: « Noli
foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat
veritas ». 21
À luz
destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a
verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto
maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela
razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a
característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para
ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada
é a presença antecipada na nossa história daquela visão
última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos
acreditam n'Ele ou O procuram de coração sincero. Assim, o
fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da
filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos
diversos, ambas apontam para aquele « caminho da vida » (Sal 1615,
11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de
chegada na alegria plena e duradoura da contemplação de Deus
Uno e Trino.
CAPÍTULO II - CREDO UT INTELLEGAM
1. « A
sabedoria sabe e compreende todas as coisas» (Sab9,
11)
16.
Quão profunda seja a ligação entre o conhecimento da fé e o
da razão, já a Sagrada Escritura no-lo indica com elementos
de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros
Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem
preconceitos, dessas páginas da Sagrada Escritura é o facto
de estes textos conterem não apenas a fé de Israel, mas
também o tesouro de civilizações e culturas já
desaparecidas. Como se de um desígnio particular se
tratasse, o Egipto e a Mesopotâmia fazem ouvir novamente a
sua voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo
Oriente ressurgem nestas páginas ricas de intuições
singularmente profundas.
Não é
por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem
sábio, o apresenta como aquele que ama e busca a verdade: «
Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre
com a sua inteligência; que repassa no seu coração os
caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento dos
seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o rasto, e
permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e
escuta às suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa
um pilar nas suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e
estabelece ali agradável morada; coloca os seus filhos
debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará debaixo dos
seus ramos; à sua sombra estará defendido do calor, e
repousará na sua glória » (Sir 14,
20-27).
Para o
autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é uma
característica comum a todos os homens. Graças à
inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a
possibilidade de « saciarem-se nas águas profundas » do
conhecimento (cf. Prov 20,
5). Seguramente, no Antigo Israel, o conhecimento do mundo e
dos seus fenómenos não se realizava pela via da abstracção,
como já o fazia o filósofo jónico ou o sábio egípcio. E
menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento
nos parâmetros próprios da época moderna, mais propensa à
subdivisão do saber. Apesar disso, o mundo bíblico fez
confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu
contributo original.
Qual?
O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção de
que existe uma unidade profunda e indivisível entre o
conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele
acontece, assim como a história e as diversas vicissitudes
da nação são realidades observadas, analisadas e julgadas
com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a
este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia
da razão, nem para reduzir o seu espaço de acção, mas apenas
para fazer compreender ao homem que, em tais acontecimentos,
Se torna visível e actua o Deus de Israel. Assim, não é
possível conhecer profundamente o mundo e os factos da
história, sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que
neles actua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a
mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a
presença operante da Providência. A tal propósito, é
significativa uma expressão do livro dos Provérbios: « A
mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem
dirige os seus passos » (16, 9). É como se dissesse que o
homem, pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada, mas
percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos e até ao
fim, ele só o consegue se, de ânimo recto, integrar a sua
pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão e a fé não
podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a
possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o
mundo e Deus.
17.
Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a
fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço
próprio de realização. Aponta nesta direcção o livro dos
Provérbios, quando exclama: « A glória de Deus é encobrir as
coisas, e a glória dos reis é investigá-las » (25, 2). Deus
e o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa
relação única. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se
encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua
glória; ao homem, pelo contrário, compete o dever de
investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua
nobreza. Um novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo
Salmista, quando diz: « Quão insondáveis para mim, ó Deus,
vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera
contá-los, são mais que as areias; se pudesse chegar ao fim,
estaria ainda convosco » (139/ 138, 17-18). O desejo de
conhecer é tão grande e comporta tal dinamismo que o coração
do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira pela
riqueza infinita que se encontra para além deste, por intuir
que nela está contida a resposta cabal para toda a questão
ainda sem resposta.
18.
Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube
abrir à razão o caminho para o mistério. Na revelação de
Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão estava
procurando alcançar sem o conseguir. A partir desta forma
mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito compreendeu que
a razão deve respeitar algumas regras fundamentais, para
manifestar do melhor modo possível a própria natureza. A
primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é
um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da
consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o
orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista
pessoal; a terceira regra funda-se no « temor de Deus », de
quem a razão deve reconhecer tanto a transcendência soberana
como o amor solícito no governo do mundo.
Quando
o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento
e acaba por encontrar-se na condição do « insensato ».
Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à
vida. É que o insensato ilude-se pensando que conhece muitas
coisas, mas, de facto, não é capaz de fixar o olhar nas
realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua
mente (cf. Prov 1,
7) e de assumir uma atitude correcta para consigo mesmo e o
ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar que «
Deus não existe » (cf. Sal 1413,
1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja
deficiente o seu conhecimento e quão distante esteja ele da
verdade plena a respeito das coisas, da sua origem e do seu
destino.
19.
Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos
importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o
autor sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também
através da natureza. Para os antigos, o estudo das ciências
naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosófico.
Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência,
é capaz de « conhecer a constituição do universo e a força
dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posição dos
astros, a natureza dos animais mansos e os instintos dos
animais ferozes » (Sab 7,
17.19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de
filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito
significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, à
qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que,
raciocinando precisamente sobre a natureza, pode-se chegar
ao Criador: « Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se,
por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor » (Sab 13,
5). Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação
divina, constituído pelo maravilhoso « livro da natureza »;
lendo-o com os meios próprios da razão humana, pode-se
chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua
inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de
tudo, isso fica-se a dever não tanto à falta de um meio
adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela sua
vontade livre e pelo seu pecado.
20.
Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não
superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só
adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num
horizonte mais amplo, o da fé: « O Senhor é quem dirige os
passos do homem; como poderá o homem compreender o seu
próprio destino? » (Prov 20,
24). A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, na
medida em que lhe permite alcançar coerentemente o seu
objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema
onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem
alcança a verdade, porque, iluminado pela fé, descobre o
sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria
existência. Justamente, pois, o autor sagrado coloca o
início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: « O
temor do Senhor é o princípio da sabedoria » (Prov 1,
7; cf. Sir 1,
14).
2. « Adquire
a sabedoria, adquire a inteligência »
(Prov 4,
5)
21.
Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia
apenas numa atenta observação do homem, do mundo e da
história, mas supõe como indispensável também uma relação
com a fé e os conteúdos da Revelação. Aqui se concentram os
desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a que deu
resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem
bíblico descobriu que não se podia compreender senão como «
ser em relação »: relação consigo mesmo, com o povo, com o
mundo e com Deus. Esta abertura ao mistério, que provinha da
Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte dum verdadeiro
conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em
espaços infinitos, recebendo inesperadas possibilidades de
compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação não
estava isento da fadiga causada pelo embate nas limitações
da razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com
que o livro dos Provérbios denuncia o cansaço provado ao
tentar compreender os misteriosos desígnios de Deus (cf. 30,
1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a
força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da
certeza de que Deus o criou como um « explorador » (cf. Coel1,
13), cuja missão é não deixar nada sem tentar, não obstante
a contínua chantagem da dúvida. Apoiando-se em Deus, o
crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o
que é belo, bom e verdadeiro.
22. S.
Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos, ajuda-nos
a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos Livros
Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma
argumentação filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade
profunda: através da criação, os « olhos da mente » podem
chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das
criaturas, Ele faz intuir à razão o seu « poder » e a sua «
divindade » (cf. Rom 1,
20). Deste modo, é atribuída à razão humana uma capacidade
tal que parece quase superar os seus próprios limites
naturais: não só ultrapassa o âmbito do conhecimento
sensorial, visto que lhe é possível reflectir criticamente
sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos
sentidos, pode chegar também à causa que está na origem de
toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica,
podemos dizer que, neste significativo texto paulino, está
afirmada a capacidade metafísica do homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação estava
prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o
dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o
Criador. Como resultado da desobediência com que o homem
escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomia
relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal
facilidade de acesso a Deus criador.
O
livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição
do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do Éden,
tendo no centro « a árvore da ciência do bem e do mal » (2,
17). O símbolo é claro: o homem não era capaz de discernir e
decidir, por si só, aquilo que era bem e o que era mal, mas
devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do
orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram
soberanos e autónomos, podendo prescindir do conhecimento
vindo de Deus. Nesta desobediência original, eles implicaram
todo o homem e mulher, causando à razão traumas sérios que
haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a
verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a
verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é
fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos
revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens
se tornaram « vãos » e os seus arrazoados tortuosos e falsos
(cf. Rom 1,
21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver
claramente: a razão foi progressivamente ficando prisioneira
de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de
salvação que redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a
dos grilhões onde ela mesma se tinha algemado.
23.
Deste modo, a relação do cristão com a filosofia requer um
discernimento radical. No Novo Testamento, especialmente nas
cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a
contraposição entre « a sabedoria deste mundo » e a
sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade
da sabedoria revelada rompe o círculo dos nossos esquemas de
reflexão habituais, que não são minimamente capazes de
exprimi-la de forma adequada.
O
início da primeira carta aos Coríntios apresenta
radicalmente este dilema. O Filho de Deus crucificado é o
acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda a
tentativa da mente para construir, sobre razões puramente
humanas, uma justificação suficiente do sentido da
existência. O verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer
filosofia, é a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de
facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvífico do
Pai a mera lógica humana está destinada à falência. « Onde
está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o investigador
deste século? Porventura, Deus não considerou louca a
sabedoria deste mundo? » (1 Cor 1,
20) — interroga-se enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que
Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do homem
sábio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento
duma novidade radical: « O que é louco segundo o mundo é que
Deus escolheu para confundir os sábios (...). O que é vil e
desprezível no mundo, é que Deus escolheu, como também
aquelas coisas que nada são, para destruir as que são » (1
Cor 1,
27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria
fragilidade o pressuposto da sua força; mas S. Paulo não
hesita em afirmar: « Quando me sinto fraco, então é que sou
forte » (2 Cor 12,
10). O homem não consegue compreender como possa a morte ser
fonte de vida e de amor, mas Deus, para revelar o mistério
do seu desígnio salvador, escolheu precisamente o que a
razão considera « loucura » e « escândalo ». Usando a
linguagem dos filósofos do seu tempo, Paulo chega ao clímax
da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: « Deus
escolheu, no mundo, aquelas coisas que nada são, para
destruir as que são » (cf. 1
Cor 1, 28).
Para exprimir o carácter gratuito do amor revelado na cruz
de Cristo, o Apóstolo não tem medo de usar a linguagem mais
radical que os filósofos empregavam nas suas reflexões a
respeito de Deus. A razão não pode esgotar o mistério de
amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a
resposta última que esta procura. S. Paulo coloca, não a
sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria como
critério, simultaneamente, de verdade e de salvação.
Por
conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite
cultural que se lhe queira impor, obrigando a abrir-se à
universalidade da verdade de que é portadora. Como é grande
o desafio lançado à nossa razão e como são enormes as
vantagens que terá, se ela se render! A filosofia, que por
si mesma já é capaz de reconhecer a necessidade do homem se
transcender continuamente na busca da verdade, pode, ajudada
pela fé, abrir-se para, na « loucura » da Cruz, acolher como
genuína a crítica a quantos se iludem de possuir a verdade,
encalhando-a nas sirtes dum sistema próprio. A relação entre
a fé e a filosofia encontra, na pregação de Cristo
crucificado e ressuscitado, o escolho contra o qual pode
naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no
oceano ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira
entre a razão e a fé, mas torna-se claro também o espaço
onde as duas se podem encontrar.
CAPÍTULO III - INTELLEGO UT CREDAM
1.
Caminhar à procura da verdade
24.
Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada
de Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A
cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que
representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um
altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base
comum para iniciar o anúncio do querigma: « Atenienses —
disse ele —, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos
homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos
monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta
inscrição: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O que venerais
sem conhecer, é que eu vos anuncio » (Act 17,
22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto
criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida.
Depois continua o seu discurso, dizendo: « Fez a partir de
um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a
face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites
para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus
e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não
Se encontre longe de cada um de nós » (Act 17,
26-27).
O
Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre
guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem,
foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a
liturgia de Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar
pelos que não crêem, diz: « Deus eterno e omnipotente,
criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em
Vós descansa o seu coração ». 22 Existe,
portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer;
o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar
o contingente para se estender até ao infinito.
De
vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que
conseguia dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a
música, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras
realizações da sua inteligência criadora tornaram-se canais
de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura.
Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar,
recolheu este movimento, exprimindo, com os meios e segundo
as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo
universal do homem.
25. «
Todos os homens desejam saber », 23 e
o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida
quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em
descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em
toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz
não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se
interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode
sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu
saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo
contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se
satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando
escreve: « Encontrei muitos com desejos de enganar outros,
mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado ». 24 Considera-se,
justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando
consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo
que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal
sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo
de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências,
que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão
significativos, favorecendo realmente o progresso da
humanidade inteira.
E a
pesquisa é tão importante no campo teórico, como no âmbito
prático: ao referir-me a este, desejo aludir à procura da
verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito,
graças precisamente ao agir ético, a pessoa, se actuar
segundo a sua livre e recta vontade, entra pela estrada da
felicidade e encaminha-se para a perfeição. Também neste
caso, está em questão a verdade. Reafirmei esta convicção na
carta encíclica Veritatis
splendor: « Não há moral sem liberdade (...). Se existe
o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da
verdade, há ainda antes a obrigação moral grave para cada um
de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida
». 25
Por
isso, é necessário que os valores escolhidos e procurados na
vida sejam verdadeiros, porque só estes é que podem
aperfeiçoar a pessoa, realizando a sua natureza. Não é
fechando-se em si mesmo que o homem encontra esta verdade
dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de
dimensões que o transcendem. Esta é uma condição necessária
para que cada um se torne ele mesmo e cresça como pessoa
adulta e madura.
26. Ao
princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma
interrogativa: A
vida tem um sentido? Para onde se dirige? À
primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer
radicalmente sem sentido. Não é preciso recorrer aos
filósofos do absurdo, nem às perguntas provocatórias que se
encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A
experiência quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a
observação de muitos factos, que à luz da razão se revelam
inexplicáveis, bastam para tornar iniludível um problema tão
dramático como é a questão do sentido da vida. 26 A
isto se deve acrescentar que a primeira verdade
absolutamente certa da nossa existência, para além do facto
de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado
tão desconcertante como este, impõe-se a busca de uma
resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade
sobre o seu fim. Quer saber se a morte será o termo
definitivo da sua existência, ou se algo permanece para além
da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não. É
significativo que o pensamento filosófico tenha recebido, da
morte de Sócrates, uma orientação decisiva que o marcou
durante mais de dois milénios. Certamente não é por acaso
que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre
voltam a pôr-se este problema, associado à questão do
sentido da vida e da imortalidade.
27. A
tais questões, não pode esquivar-se ninguém — nem o
filósofo, nem o homem comum. E, da resposta que se lhes der,
deriva uma orientação decisiva da investigação: a
possibilidade, ou não, de alcançar uma verdade universal.
Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é
verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que
é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos.
Contudo, para além desta universalidade, o homem procura um
absoluto que seja capaz de dar resposta e sentido a toda a
sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de fundamento a
tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicação
definitiva, um valor supremo, para além do qual não existam,
nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As
hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o
momento em que, admitam-no ou não, há necessidade de ancorar
a existência a uma verdade reconhecida como definitiva, que
forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.
Os
filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e
exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de
pensamento. Mas, para além dos sistemas filosóficos, existem
outras expressões nas quais o homem procura formular a sua «
filosofia »: trata-se de convicções ou experiências
pessoais, tradições familiares e culturais, ou itinerários
existenciais vividos sob a autoridade de um mestre. A cada
uma destas manifestações, subjaz sempre vivo o desejo de
alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto.
2. Os
diferentes rostos da verdade do homem
28. Há
que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se
desenrola com a referida transparência e coerência de
raciocínio. Muitas vezes, as limitações naturais da razão e
a inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa
pessoal. Outros interesses de vária ordem podem sobrepor-se
à verdade. Acontece também que o próprio homem a evite,
quando começa a entrevê-la, porque teme as suas exigências.
Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade que
preside à sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a
sua vida sobre a dúvida, a incerteza ou a mentira; tal
existência estaria constantemente ameaçada pelo medo e a
angústia. Assim, pode-se definir o homem como aquele
que procura a verdade.
29. É
impensável que uma busca, tão profundamente radicada na
natureza humana, possa ser completamente inútil e vã. A
própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas
implica já uma primeira resposta. O homem não começaria a
procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse
absolutamente inatingível. Só a previsão de poder chegar a
uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro
passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa
científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição,
se lança à procura da explicação lógica e empírica dum certo
fenómeno, fá-lo porque tem a esperança, desde o início, de
encontrar uma resposta, e não se dá por vencido com os
insucessos. Nem considera inútil a intuição inicial, só
porque não alcançou o seu objectivo; dirá antes, e
justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada.
O
mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito
das questões últimas. A sede de verdade está tão radicada no
coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua
existência ficaria comprometida. Basta observar a vida de
todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós
se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao
mesmo tempo, se guarda na alma, pelo menos, o esboço das
respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos
convencidos, até porque notamos que não diferem
substancialmente das respostas a que muitos outros chegaram.
Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo
valor; todavia, o conjunto dos resultados alcançados
confirma a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de
chegar à verdade.
30.
Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas
de verdade. As mais numerosas são as verdades que assentam
em evidências imediatas ou recebem confirmação da
experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da
pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de
carácter filosófico, que o homem alcança através da
capacidade especulativa do seu intelecto. Por último,
existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as
suas raízes também na filosofia; estão contidas nas
respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas
tradições, às questões últimas. 27
Quanto
às verdades filosóficas, é necessário especificar que não se
limitam só às doutrinas, por vezes efémeras, dos filósofos
profissionais. Como já disse, todo o homem é, de certa
forma, um filósofo e possui as suas próprias concepções
filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos
modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre
o sentido da própria existência: e, à luz disso, interpreta
a própria vida pessoal e regula o seu comportamento. É aqui
que deveria colocar-se a questão da relação entre as
verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus
Cristo. Antes de responder a tal questão, é preciso ter em
conta outro dado da filosofia.
31. O
homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa
família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na
sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu
nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a
linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades
nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o
crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades
possam ser postas em dúvida e avaliadas através da
actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede
que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades
sejam « recuperadas » com base na experiência feita ou em
virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma
pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente
acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal.
Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os
inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se
fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria,
controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de
todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites
como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente
todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais
se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade
da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é
também aquele
que vive de crenças.
32.
Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por
outras pessoas. Neste acto, pode-se individuar uma
significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença
apresenta-se como uma forma imperfeita de conhecimento, que
precisa de se aperfeiçoar progressivamente por meio da
evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a
crença é muitas vezes mais rica, humanamente, do que a
simples evidência, porque inclui a relação interpessoal,
pondo em jogo não apenas as capacidades cognoscitivas do
próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical de
confiar noutras pessoas, iniciando com elas um
relacionamento mais estável e íntimo.
Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação
interpessoal não são primariamente de ordem empírica ou de
ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da
própria pessoa: aquilo que ela é e o que manifesta do seu
próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se reduz
apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas
consiste também numa relação viva de doação e fidelidade ao
outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra
plena certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o
conhecimento por crença, que se fundamenta na confiança
interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto,
acreditando, o homem confia na verdade que o outro lhe
manifesta.
Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado!
O primeiro que me vem ao pensamento é o testemunho dos
mártires. Com efeito, o mártir é a testemunha mais genuína
da verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com
Jesus Cristo, alcançou a verdade a respeito da sua vida, e
nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza.
Nem o sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo
retroceder da adesão à verdade que descobriu no encontro com
Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos
mártires atrai, gera consenso, é escutado e seguido. Esta é
a razão pela qual se tem confiança na sua palavra:
descobre-se neles a evidência dum amor que não precisa de
longas demonstrações para ser convincente, porque fala
daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente
como verdadeiro e que há tanto tempo procurava. Em resumo, o
mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz
aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós
mesmos queríamos ter a força de dizer.
33.
Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados
do problema. O homem, por sua natureza, procura a verdade.
Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades
parciais, físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro
bem em cada um das suas decisões. Mas a sua pesquisa aponta
para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o
sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que não
pode desembocar senão no absoluto. 28 Graças
às capacidades de que está dotado o seu pensamento, o homem
pode encontrar e reconhecer uma tal verdade. Sendo esta
vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não
só por via racional, mas também através de um abandono
fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e
autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de
confiar o próprio ser e existência a outra pessoa
constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais
significativos e expressivos.
É bom
não esquecer que também a razão, na sua busca, tem
necessidade de ser apoiada por um diálogo confiante e uma
amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por
vezes envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento
dos filósofos antigos, que punham a amizade como um dos
contextos mais adequados para o recto filosofar.
Do que
ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de
busca, humanamente infindável: busca da verdade e busca duma
pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua ajuda,
dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o
objectivo dessa busca. De facto, superando o nível da
simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça
que lhe consente participar no mistério de Cristo, onde lhe
é oferecido o conhecimento verdadeiro e coerente de Deus Uno
e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé
reconhece o apelo último dirigido à humanidade, para que
possa tornar realidade o que experimenta como desejo e
nostalgia.
34.
Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está
em contraste com as verdades que se alcançam filosofando.
Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à
verdade na sua plenitude. A unidade da verdade já é um
postulado fundamental da razão humana, expresso no princípio
de não-contradição. A Revelação dá a certeza desta unidade,
ao mostrar que Deus criador é também o Deus da história da
salvação. Deus que fundamenta e garante o carácter
inteligível e racional da ordem natural das coisas, sobre o
qual os cientistas se apoiam confiadamente, 29 é
o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Esta unidade da verdade, natural e revelada, encontra a sua
identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o
apóstolo Paulo: « A verdade que existe em Jesus » (Ef 4,
21; cf. Col 1,
15-20). Ele é a Palavra
eterna, na qual tudo foi criado, e ao mesmo tempo é a Palavra
encarnada que,
com toda a sua pessoa,30 revela
o Pai (cf.Jo 1,
14.18). Aquilo que a razão humana procura « sem o conhecer »
(cf. Act 17,
23), só pode ser encontrado por meio de Cristo: de facto, o
que n'Ele se revela é a « verdade plena » (cf. Jo 1,
14-16) de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por
isso mesmo, n'Ele encontra a sua realização (cf. Col 1,
17).
35.
Tendo estas considerações gerais como pano de fundo, é
necessário agora examinar, de maneira mais directa, a
relação entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relação
requer uma dupla consideração, visto que a verdade que nos
vem da Revelação tem de ser, simultaneamente, compreendida
pela luz da razão. Só nesta dupla acepção é que será
possível especificar a justa relação da verdade revelada com
o saber filosófico. Por isso, vamos considerar, em primeiro
lugar, as relações entre a fé e a filosofia ao longo da
história, donde será possível individuar alguns princípios,
que constituem os pontos de referência aos quais recorrer
para estabelecer a correcta relação entre as duas ordens de
conhecimento.
CAPÍTULO IV - A RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO
1. As
etapas significativas do encontro entre a fé e a razão
36. Os
Actos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão se
encontrou, desde os seus primórdios, com as correntes
filosóficas do tempo. Lá se refere a discussão que S. Paulo
teve com « alguns filósofos epicuristas e estóicos » (17,
18). A análise exegética do discurso no Areópago evidenciou
repetidas alusões a ideias populares, predominantemente de
origem estóica. Certamente isso não se deu por acaso; os
primeiros cristãos, para se fazerem compreender pelos
pagãos, não podiam citar apenas « Moisés e os profetas » nos
seus discursos, mas tinham de servir-se também do
conhecimento natural de Deus e da voz da consciência moral
de cada homem (cf. Rom 1, 19-21; 2, 14-15; Act 14,
16-17). Como, porém, na religião pagã, esse conhecimento
natural tinha degenerado em idolatria (cf. Rom 1,
21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o seu
discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início
tinham contraposto, aos mitos e cultos mistéricos, conceitos
mais respeitosos da transcendência divina.
De
facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos
do pensamento clássico, foi purificar de formas mitológicas
a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a
religião grega, como grande parte das religiões cósmicas,
era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenómenos
da natureza. As tentativas do homem para compreender a
origem dos deuses e, nestes, a do universo tiveram a sua
primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem, até
hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os
pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre
a razão e a religião. Estendendo o olhar para os princípios
universais, deixaram de contentar-se com os mitos antigos e
procuraram dar fundamento racional à sua crença na
divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das
antigas tradições particulares, levava a um desenvolvimento
que correspondia às exigências da razão universal. O fim que
tal desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica
daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com esse
caminho feito foi a concepção da divindade. As superstições
acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião, pelo
menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi
nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo
fecundo com os filósofos antigos, abrindo a estrada ao
anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo.
37.
Quando se menciona este movimento de aproximação dos
cristãos à filosofia, é obrigatório recordar também a
cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo
cultural pagão, como, por exemplo, a gnose. A filosofia,
enquanto sabedoria prática e escola de vida, podia
facilmente ser confundida com um conhecimento de tipo
superior, esotérico, reservado a poucos iluminados. É, sem
dúvida, a especulações esotéricas deste género que pensa S.
Paulo, quando adverte os Colossenses: « Vede que ninguém vos
engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições
humanas, nos elementos do mundo, e não em Cristo » (2, 8).
Como são actuais estas palavras do Apóstolo, quando as
referimos às diversas formas de esoterismo que hoje se
difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necessário
sentido crítico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros
escritores dos primeiros séculos, particularmente Santo
Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a uma orientação
cultural que pretendia subordinar a verdade da Revelação à
interpretação dos filósofos.
38.
Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia não
foi fácil nem imediato. A exercitação desta e a frequência
das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros
cristãos como transtorno, do que como uma oportunidade. Para
eles, a primeira e mais urgente missão era o anúncio de
Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro
pessoal, capaz de levar o interlocutor à conversão do
coração e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso não
significa que ignorassem a obrigação de aprofundar a
compreensão da fé e suas motivações; antes pelo contrário. É
injusta e pretextuosa a crítica de Celso, quando acusa os
cristãos de serem gente « iletrada e rude ». 31 A
explicação deste seu desinteresse inicial tem de ser
procurada noutro lado. Na realidade, o encontro com o
Evangelho oferecia uma resposta tão satisfatória à questão
do sentido da vida, até então insolúvel, que frequentar os
filósofos parecia-lhes uma coisa sem interesse e, em certos
aspectos, superada.
Isto
é, hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado
pelo cristianismo, quando defende o acesso à verdade como um
direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais
e sexuais, o cristianismo tinha anunciado, desde as suas
origens, a igualdade de todos os homens diante de Deus. A
primeira consequência deste conceito registou-se no tema da
verdade, ficando decididamente superado o carácter elitista
que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso
à verdade é um bem que permite chegar a Deus, todos devem
estar em condições de poder percorrer esta estrada. As vias
para chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que
a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode
ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à
revelação de Jesus Cristo.
Como
pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosófico,
sempre marcado por um prudente discernimento, há que
recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava
a ter pela filosofia grega depois da sua conversão, afirmava
decidida e claramente que tinha encontrado, no cristianismo,
« a única filosofia segura e vantajosa ». 32 De
forma semelhante, Clemente de Alexandria chamava ao
Evangelho « a verdadeira filosofia », 33 e,
em analogia com a lei mosaica, via a filosofia como uma
instrução propedêutica à fé cristã 34 e
uma preparação ao Evangelho. 35 Uma
vez que « a filosofia anela por aquela sabedoria que
consiste na rectidão da alma e da palavra e na pureza da
vida, está aberta à sabedoria e tudo faz para a alcançar. No
nosso meio, designam-se por filósofos os que amam a
sabedoria que é criadora e mestra de tudo, isto é, o
conhecimento do Filho de Deus ».36 Segundo
este pensador alexandrino, a filosofia grega não tem como
primeiro objectivo completar ou corroborar a verdade cristã;
a sua função é, sobretudo, a defesa da fé: « A doutrina do
Salvador é perfeita em si mesma e não precisa de apoio,
porque é a força e a sabedoria de Deus. A filosofia grega
não torna mais forte a verdade com o seu contributo, mas,
porque torna impotente o ataque da sofística e desarma os
assaltos traiçoeiros contra a verdade, foi justamente
chamada sebe e muro de vedação da vinha ».37
39.
Entretanto, na história deste desenvolvimento, é possível
constatar a assunção crítica do pensamento filosófico por
parte dos pensadores cristãos. No meio dos primeiros
exemplos encontrados, sobressai, sem dúvida, Orígenes.
Contra os ataques lançados pelo filósofo Celso, ele recorre
à filosofia platónica para argumentar e responder-lhe.
Citando vários elementos do pensamento platónico, começa a
elaborar uma primeira forma de teologia cristã. Naquele
tempo, a designação mesma de teologia e a sua concepção como
discurso racional sobre Deus ainda estavam ligadas à sua
origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o
termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do
discurso filosófico. Mas, à luz da revelação cristã, o que
anteriormente indicava uma doutrina genérica sobre a
divindade, passou a assumir um significado totalmente novo,
ou seja, a reflexão que o crente realiza para exprimir a verdadeira
doutrina acerca
de Deus. Este pensamento cristão novo, que estava a
desenvolver-se, servia-se da filosofia, mas ao mesmo tempo
tendia a distinguir-se nitidamente dela. A história revela
que o próprio pensamento platónico, quando foi assumido pela
teologia, sofreu profundas transformações, especialmente em
conceitos como a imortalidade da alma, a divinização do
homem e a origem do mal.
40.
Nesta obra de cristianização do pensamento platónico e
neoplatónico, merecem menção particular os Padres
Capadócios, Dionísio chamado o Areopagita e sobretudo Santo
Agostinho. O grande Doutor ocidental contactara diversas
escolas filosóficas, mas todas o tinham desiludido. Quando
se lhe deparou a verdade da fé cristã, então teve a força de
realizar aquela conversão radical a que os filósofos
anteriormente contactados não tinham conseguido induzi-lo.
Ele mesmo refere o motivo: « Preferindo a doutrina católica,
já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso
sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse
prova, mesmo que esta não estivesse ao alcance de qualquer
pessoa, quer a não houvesse. Seria isto mais sensato do que
zombarem da crença os maniqueístas, apoiados em temerária
promessa de ciência, para depois nos mandarem acreditar em
inúmeras fábulas tão absurdas que as não podiam provar ». 38 Quanto
aos platónicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos
de referimento de Agostinho, este censurava-os porque,
embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham,
porém, ignorado o caminho que lá conduzia: o Verbo
encarnado. 39 O
Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese
do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo
correntes do pensamento grego e latino. Também nele a grande
unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento
bíblico, acabou por ser confirmada e sustentada pela
profundidade do pensamento especulativo. A síntese feita por
Santo Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de
reflexão filosófica e teológica que o Ocidente, durante
séculos, conheceu. Com uma história pessoal intensa e
ajudado por uma admirável santidade de vida, ele foi capaz
de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando-se
à experiência, antecipavam já futuros desenvolvimentos de
algumas correntes filosóficas.
41. De
diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente
entraram em relação com as escolas filosóficas. Isto não
significa que tenham identificado o conteúdo da sua mensagem
com os sistemas a que faziam referência. A pergunta de
Tertuliano: « Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a
Academia e a Igreja? », 40 é
um sintoma claro da consciência crítica com que os
pensadores cristãos encararam, desde as origens, o problema
da relação entre a fé e a filosofia, vendo-o globalmente,
tanto nos seus aspectos positivos como nas suas limitações.
Não eram pensadores ingénuos. Precisamente porque viviam de
forma intensa o conteúdo da fé, eles conseguiam chegar às
formas mais profundas da reflexão. Por isso, é injusto e
redutivo limitar o seu trabalho a mera transposição das
verdades de fé para categorias filosóficas. Eles fizeram
muito mais; conseguiram explicitar plenamente aquilo que
resultava ainda implícito e preliminar no pensamento dos
grandes filósofos antigos. 41 Estes,
conforme já disse, tiveram a função de mostrar o modo como a
razão, livre dos vínculos externos, podia escapar do beco
sem saída dos mitos, para melhor se abrir à transcendência.
Uma razão purificada e recta era capaz de se elevar aos
níveis mais elevados da reflexão, dando fundamento sólido à
percepção do ser, do transcendente e do absoluto.
Aqui
mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a
razão na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram
a riqueza vinda da Revelação. O encontro não foi apenas
questão de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo
fascínio da outra; mas verificou-se no íntimo da alma, e foi
um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando
o fim mesmo para o qual inconscientemente tendia por força
da sua natureza, a razão pôde alcançar o sumo bem e a suma
verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as
filosofias, os Padres não tiveram medo de reconhecer tanto
os elementos comuns como as diferenças que aquelas
apresentavam relativamente à Revelação. A percepção das
convergências não ofuscava neles o reconhecimento das
diferenças.
42. Na
teologia escolástica, o papel da razão educada
filosoficamente torna-se ainda mais notável sob o impulso da
interpretação anselmiana do intelectus
fidei. Segundo o santo Arcebispo de Cantuária, a
prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria
da razão. De facto, esta não é chamada a exprimir um juízo
sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso, porque não é
idónea. A sua tarefa é, antes, saber encontrar um sentido,
descobrir razões que a todos permitam alcançar algum
entendimento dos conteúdos da fé. Santo Anselmo sublinha o
facto de que o intelecto deve pôr-se à procura daquilo que
ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para a
verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama
num amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita
que ainda não fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo:
« Ad te
videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum ». 42 Assim,
o desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além;
esta fica como que embevecida pela constatação de que a sua
capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada
aqui, porém, a razão é capaz de descobrir onde está o termo
do seu caminho: « Penso efectivamente que, quem investiga
uma coisa incompreensível, se deve contentar de chegar, pela
razão, a reconhecer com a máxima certeza a sua existência
real, embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência,
o seu modo de ser (...). Aliás, que há de tão
incompreensível e inefável como aquilo que está acima de
tudo? Portanto, se aquilo de cuja essência suprema
discutimos até agora, ficou estabelecido sobre razões
necessárias, ainda que a inteligência não o possa penetrar
de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por
isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com
efeito, se uma reflexão anterior compreendeu de maneira
racional que é incompreensível (rationabiliter
comprehendit incomprehensibile esse) o modo como a
sabedoria suprema sabe aquilo que fez (...) , quem explicará
como ela mesma se conhece e exprime, dado que sobre ela o
homem nada ou quase nada pode saber? ». 43
Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental
entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé
requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da
razão; por sua vez a razão, no apogeu da sua indagação,
admite como necessário aquilo que a fé apresenta.
2. A
novidade perene do pensamento de S. Tomás de Aquino
43.
Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial
S. Tomás, não só pelo conteúdo da sua doutrina, mas também
pelo diálogo que soube instaurar com o pensamento árabe e
hebreu do seu tempo. Numa época em que os pensadores
cristãos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia
antiga, e mais directamente da filosofia aristotélica, ele
teve o grande mérito de colocar em primeiro lugar a harmonia
que existe entre a razão e a fé. A luz da razão e a luz da
fé provêm ambas de Deus: argumentava ele; por isso, não se
podem contradizer entre si. 44
Indo
mais longe, S. Tomás reconhece que a natureza, objecto
próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da
revelação divina. Deste modo, a fé não teme a razão, mas
solicita-a e confia nela. Como a graça supõe a natureza e
leva-a à perfeição, 45 assim
também a fé supõe e aperfeiçoa a razão. Esta, iluminada pela
fé, fica liberta das fraquezas e limitações causadas pela
desobediência do pecado, e recebe a força necessária para
elevar-se até ao conhecimento do mistério de Deus Uno e
Trino. Embora sublinhando o carácter sobrenatural da fé, o
Doutor Angélico não esqueceu o valor da racionabilidade da
mesma; antes, conseguiu penetrar profundamente e especificar
o sentido de tal racionabilidade. Efectivamente, a fé é de
algum modo « exercitação do pensamento »; a razão do homem
não é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos
conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão
livre e consciente. 46
Precisamente por este motivo é que S. Tomás foi sempre
proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo
quanto ao recto modo de fazer teologia. Neste contexto,
apraz-me recordar o que escreveu o meu Predecessor, o Servo
de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da morte
do Doutor Angélico: « Sem dúvida, S. Tomás possuiu, no
máximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito
quando enfrentava os novos problemas, a honestidade
intelectual de quem não admite a contaminação do
cristianismo pela filosofia profana, mas tão pouco defende a
rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do
pensamento cristão como um pioneiro no novo caminho da
filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que
a essência da solução que ele deu ao problema novamente
posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade
do seu intuito profético, foi o da conciliação entre a
secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho,
evitando, por um lado, aquela tendência anti-natural que
nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem faltar às
exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural ». 47
44.
Entre as grandes intuições de S. Tomás, conta-se a de
atribuir ao Espírito Santo o papel de fazer amadurecer, como
sapiência, a ciência humana. Desde as primeiras páginas da
Summa theologiæ, 48
o Aquinate quis mostrar o primado daquela sapiência que é
dom do Espírito Santo e que introduz no conhecimento das
realidades divinas. A sua teologia permite compreender a
peculiaridade da sapiência na sua ligação íntima com a fé e
o conhecimento de Deus: conhece por conaturalidade,
pressupõe a fé e chega a formular rectamente o seu juízo a
partir da verdade da própria fé: « A sapiência elencada
entre os dons do Espírito Santo é distinta da mencionada
entre as virtudes intelectuais. De facto, esta segunda
adquire-se pelo estudo; aquela, pelo contrário, "provém do
alto", como diz S. Tiago. Mas é também distinta da fé,
porque esta aceita a verdade divina tal como é, enquanto é
próprio do dom da sapiência julgar segundo a verdade divina
». 49
Mas,
ao reconhecer a prioridade desta sapiência, o Doutor
Angélico não esquece a existência de mais duas formas
complementares de sabedoria: a filosófica,
que se baseia sobre a capacidade que tem o intelecto, dentro
dos próprios limites naturais, de investigar a realidade; e
a sabedoriateológica, que se fundamenta na Revelação
e examina os conteúdos da fé, alcançando o próprio mistério
de Deus.
Intimamente convencido de que « omne
verum a quocumque dicatur a Spiritu Sancto est », 50 S.
Tomás amou desinteressadamente a verdade. Procurou-a por
todo o lado onde pudesse manifestar-se, colocando em relevo
a sua universalidade. Nele, o Magistério da Igreja viu e
apreciou a paixão pela verdade; o seu pensamento,
precisamente porque se mantém sempre no horizonte da verdade
universal, objectiva e transcendente, atingiu « alturas que
a inteligência humana jamais poderia ter pensado ».51 É,
pois, com razão que S. Tomás pode ser definido « apóstolo da
verdade ».52 Porque
se consagrou sem reservas à verdade, no seu realismo soube
reconhecer a sua objectividade. A sua filosofia é
verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do simples
aparecer.
3. O
drama da separação da fé e da razão
45.
Quando surgiram as primeiras universidades, a teologia
começou a relacionar-se mais directamente com outras formas
da pesquisa e do saber científico. Santo Alberto Magno e S.
Tomás, embora admitindo uma ligação orgânica entre a
filosofia e a teologia, foram os primeiros a reconhecer à
filosofia e às ciências a autonomia de que precisavam para
se debruçar eficazmente sobre os respectivos campos de
investigação. Todavia, a partir da baixa Idade Média, essa
distinção legítima entre os dois conhecimentos
transformou-se progressivamente em nefasta separação. Devido
ao espírito excessivamente racionalista de alguns
pensadores, radicalizaram-se as posições, chegando-se, de
facto, a uma filosofia separada e absolutamente autónoma dos
conteúdos da fé. Entre as várias consequências de tal
separação, sobressai a difidência cada vez mais forte contra
a própria razão. Alguns começaram a professar uma
desconfiança geral, céptica ou agnóstica, quer para reservar
mais espaço à fé, quer para desacreditar qualquer possível
referência racional à mesma.
Em
resumo, tudo o que o pensamento patrístico e medieval tinha
concebido e actuado como uma unidade profunda, geradora dum
conhecimento capaz de chegar às formas mais altas da
especulação, foi realmente destruído pelos sistemas que
abraçaram a causa de um conhecimento racional, separado e
alternativo da fé.
46. As
radicalizações mais influentes são bem conhecidas e
visíveis, sobretudo na história do Ocidente. Não é exagerado
afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se
desenvolveu num progressivo afastamento da revelação cristã
até chegar explicitamente à contraposição. No século
passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns
representantes do idealismo procuraram, de diversos modos,
transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério
da morte e ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas
dialécticas racionalmente compreensíveis. Mas a esta
concepção, opuseram-se diversas formas de humanismo ateu,
elaboradas filosoficamente, que apontaram a fé como
prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso
da razão. Não tiveram medo de se apresentar como novas
religiões, dando base a projectos que desembocaram, no plano
político e social, em sistemas totalitários traumáticos para
a humanidade.
No
âmbito da investigação científica, foi-se impondo uma
mentalidade positivista, que não apenas se afastou de toda a
referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou
cair qualquer alusão à visão metafísica e moral. Por causa
disso, certos cientistas, privados de qualquer referimento
ético, correm o risco de não manterem, ao centro do seu
interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida. Mais,
alguns deles, cientes das potencialidades contidas no
progresso tecnológico, parecem ceder à lógica do mercado e
ainda à tentação dum poder demiúrgico sobre a natureza e o
próprio ser humano.
Como
consequência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo.
Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo
fascínio sobre os nossos contemporâneos. Os seus seguidores
defendem a pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem
possibilidade alguma de alcançar a meta da verdade. Na
interpretação niilista, a existência é somente uma
oportunidade para sensações e experiências onde o efémero
detém o primado. O niilismo está na origem duma mentalidade
difusa, segundo a qual não se deve assumir qualquer
compromisso definitivo, porque tudo é fugaz e provisório.
47.
Por outro lado, é preciso não esquecer que, na cultura
moderna, foi alterada a própria função da filosofia. De
sabedoria e saber universal que era, foi-se progressivamente
reduzindo a uma das muitas áreas do saber humano; mais, sob
alguns dos seus aspectos, ficou reduzida a um papel
completamente marginal. Entretanto, foram-se consolidando
sempre mais outras formas de racionalidade, pondo assim em
evidência o carácter marginal do saber filosófico. Em vez de
apontarem para a contemplação da verdade e a busca do fim
último e do sentido da vida, essas formas de racionalidade
são orientadas, ou pelo menos orientáveis, como « razão
instrumental » ao serviço de fins utilitaristas, de prazer
ou de poder.
Quanto
seja perigoso absolutizar esta estrada, fi-lo notar já na
minha primeira carta encíclica, ao escrever: « O homem de
hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que
produz, ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e,
ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e
das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme
actividade do homem, com grande rapidez e de modo muitas
vezes imprevisível, passam a ser não tanto objecto de
"alienação", no sentido de que são simplesmente tirados
àqueles que os produzem, como sobretudo, pelo menos
parcialmente, num círculo consequente e indirecto dos seus
efeitos, tais frutos voltam-se contra o próprio homem. Eles
são de facto dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem.
Nisto parece consistir o acto principal do drama da
existência humana contemporânea, na sua dimensão mais ampla
e universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no
medo. Teme que os seus produtos, naturalmente não todos nem
a maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que
encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua
iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si
mesmo ». 53
Na
sequência destas transformações culturais, alguns filósofos,
abandonando a busca da verdade por si mesma, assumiram como
único objectivo a obtenção da certeza subjectiva ou da
utilidade prática. Em consequência, deu-se o obscurecimento
da verdadeira dignidade da razão, impossibilitada de
conhecer a verdade e de procurar o absoluto.
48.
Assim, o dado saliente desta última parte da história da
filosofia é a constatação duma progressiva separação entre a
fé e a razão filosófica. É verdade que, observando bem,
mesmo na reflexão filosófica daqueles que contribuíram para
ampliar a distância entre fé e razão, se manifestam às vezes
gérmenes preciosos de pensamento que, se aprofundados e
desenvolvidos com mente e coração recto, podem fazer
descobrir o caminho da verdade. Estes gérmenes de pensamento
podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas análises
sobre a percepção e a experiência, a imaginação e o
inconsciente, sobre a personalidade e a intersubjectividade,
a liberdade e os valores, o tempo e a história. Inclusive o
tema da morte pode tornar-se, para todo o pensador, um
severo apelo a procurar dentro de si mesmo o sentido
autêntico da própria existência. Todavia isto não pode fazer
esquecer a necessidade que a actual relação entre fé e razão
tem de um cuidadoso esforço de discernimento, porque tanto a
razão como a fé ficaram reciprocamente mais pobres e débeis.
A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu
sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta
final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o
sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de
ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo
pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência;
pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um
mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não
tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o
olhar sobre a novidade e radicalidade do ser.
À luz
disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo
para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade
profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua
natureza, no respeito da recíproca autonomia. Ao desassombro
(parresia) da fé deve corresponder a audácia da
razão.
CAPÍTULO V - INTERVENÇÕES DO MAGISTÉRIO EM MATÉRIA
FILOSÓFICA
1. O
discernimento do Magistério como diaconia da verdade
49. A
Igreja não propõe uma filosofia própria, nem canoniza uma
das correntes filosóficas em detrimento de outras. 54 A
razão profunda desta reserva está no facto de que a
filosofia, mesmo quando entra em relação com a teologia,
deve proceder segundo os seus métodos e regras; caso
contrário, não haveria garantia de permanecer orientada para
a verdade, tendendo para a mesma através dum processo
racionalmente controlável. Pouca ajuda daria uma filosofia
que não agisse à luz da razão, segundo princípios próprios e
específicas metodologias. Fundamentalmente, a raiz da
autonomia de que goza a filosofia, há que individuá-la no
facto de a razão estar orientada, por sua natureza, para a
verdade e dotada em si mesma dos meios necessários para a
alcançar. Uma filosofia, ciente deste seu « estatuto
constitutivo », não pode deixar de respeitar as exigências e
evidências próprias da verdade revelada.
E,
todavia, vimos, na história, os extravios e erros em que
várias vezes incorreu o pensamento filosófico, sobretudo
moderno. Não é função nem competência do Magistério intervir
para colmar as lacunas dum discurso filosófico carente. Mas,
já é sua obrigação reagir, de forma clara e vigorosa, quando
teses filosóficas discutíveis ameaçam a recta compreensão do
dado revelado e quando se difundem teorias falsas e
sectárias que semeiam erros graves, perturbando a
simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus.
50.
Por conseguinte, o Magistério eclesiástico pode, e deve,
exercer com autoridade, à luz da fé, o discernimento crítico
sobre filosofias e afirmações que contradigam a doutrina
cristã. 55 Ao
Magistério compete, antes de mais, indicar os pressupostos e
as conclusões filosóficas que são incompatíveis com a
verdade revelada, formulando assim as exigências que, do
ponto de vista da fé, se impõem à filosofia. Além disso, no
desenvolvimento do saber filosófico, surgiram diversas
escolas de pensamento; ora, este pluralismo impõe ao
Magistério a responsabilidade de exprimir o seu juízo sobre
a compatibilidade ou incompatibilidade das concepções de
base, defendidas por essas escolas, com as exigências
próprias da palavra de Deus e da reflexão teológica.
A
Igreja tem o dever de indicar aquilo que pode existir, num
sistema filosófico, de incompatível com a sua fé. Na
verdade, muitos conteúdos filosóficos — relativos, por
exemplo, a Deus, ao homem, à sua liberdade e ao seu
comportamento ético —, têm a ver directamente com a Igreja,
porque tocam na verdade revelada que ela guarda. Quando nós,
Bispos, realizamos o referido discernimento, temos a
obrigação de ser « testemunhas da verdade », no cumprimento
dum serviço humilde, mas firme, que todo o filósofo devia
prezar, em benefício da recta ratio, ou seja, da razão que
reflecte correctamente sobre a verdade.
51. Em
todo o caso, tal discernimento não deve ser visto
primariamente de forma negativa, como se a intenção do
Magistério fosse eliminar ou reduzir qualquer possibilidade
de mediação; ao contrário, as suas intervenções visam em
primeiro lugar suscitar, promover e encorajar o pensamento
filosófico. Os filósofos são, aliás, os primeiros a
compreender a exigência de autocrítica, de correcção de
eventuais erros, e a necessidade de ultrapassar os limites
demasiado estreitos em que a sua reflexão foi concebida. De
modo particular, deve-se considerar que a verdade é uma só,
embora as suas expressões acusem os vestígios da história e
sejam, além disso, obra duma razão humana ferida e
enfraquecida pelo pecado. Daqui se conclui que nenhuma forma
histórica da filosofia pode, legitimamente, ter a pretensão
de abraçar a totalidade da verdade ou de possuir a
explicação cabal do ser humano, do mundo e da relação do
homem com Deus.
E
hoje, com esta multiplicação de sistemas, métodos, conceitos
e argumentos filosóficos, muitas vezes extremamente
fragmentários, impõe-se ainda com maior urgência um
discernimento crítico à luz da fé. Este discernimento não é
fácil, porque, se já é custoso reconhecer as capacidades
naturais e inalienáveis da razão com as suas limitações
constitutivas e históricas, mais problemático ainda se pode
tornar às vezes o discernimento de cada uma das propostas
filosóficas para verificar, do ponto de vista da fé, o que
apresentam de válido e fecundo e o que existe nelas de
errado ou perigoso. De qualquer modo, a Igreja sabe que os «
tesouros da sabedoria e da ciência » estão escondidos em
Cristo (Col 2,
3); por isso, ela intervém, estimulando a reflexão
filosófica, para que não se obstrua a estrada que leva ao
conhecimento do mistério.
52.
Não foi só recentemente que o Magistério da Igreja interveio
para manifestar o seu pensamento a respeito de determinadas
doutrinas filosóficas. A título de exemplo, basta recordar,
no decurso dos séculos, as tomadas de posição acerca das
teorias que defendiam a preexistência das almas, 56 e
ainda sobre as diversas formas de idolatria e esoterismo
supersticioso, contidas em teses astrológicas; 57 sem
esquecer os textos mais sistemáticos contra algumas teses do
averroísmo latino, incompatíveis com a fé cristã. 58
Se a
palavra do Magistério se fez ouvir mais frequentemente a
partir da segunda metade do século passado, foi porque,
naquele período, numerosos católicos sentiram o dever de
contrapor uma filosofia própria às várias correntes do
pensamento moderno. Daqui resultou, para o Magistério da
Igreja, a obrigação de vigiar a fim de que tais filosofias
não degenerassem, por sua vez, em formas erróneas e
negativas. Acabaram assim censurados os dois extremos: dum
lado, o fideísmo 59 e
otradicionalismo radical,60 pela
sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão; e,
do outro, o racionalismo 61 e
o ontologismo, 62 porque
atribuíam à razão natural aquilo que apenas se pode conhecer
pela luz da fé. Os conteúdos positivos deste debate foram
formalizados na constituição dogmática Dei
Filius, por meio da qual um concílio ecuménico — o
Vaticano I — intervinha, pela primeira vez e de forma
solene, sobre as relações entre razão e fé. A doutrina
contida neste texto marcou, intensa e positivamente, a
investigação filosófica de muitos crentes e constitui ainda
hoje um ponto normativo de referência para uma correcta e
coerente reflexão cristã neste âmbito particular.
53.
Mais do que teses filosóficas isoladas, as tomadas de
posição do Magistério ocuparam-se da necessidade do
conhecimento racional — e por conseguinte, em última
análise, do conhecimento filosófico — para a compreensão da
fé. O Concílio Vaticano I, sintetizando e confirmando
solenemente os ensinamentos que o Magistério pontifício
tinha proposto aos fiéis de maneira ordinária e constante,
pôs em evidência como são inseparáveis e ao mesmo tempo
irredutíveis entre si o conhecimento natural de Deus e a
Revelação, a razão e a fé. O Concílio partia da exigência
fundamental — pressuposta também pela Revelação — da
cognoscibilidade natural da existência de Deus, princípio e
fim de todas as coisas, 63 para
concluir com a solene afirmação já citada: « Existem duas
ordens de conhecimento, distintas não apenas pelo seu
princípio, mas também pelo seu objecto ». 64 É
que era preciso afirmar, contra qualquer forma de
racionalismo, a distinção entre os mistérios da fé e as
conclusões filosóficas, e ainda a transcendência e
precedência daqueles sobre estas; por outro lado, contra as
tentações fideístas, tornava-se necessário corroborar a
unidade da verdade e também o contributo positivo que o
conhecimento racional pode, e deve, dar para o conhecimento
da fé: « Mas, embora a fé esteja acima da razão, não poderá
existir nunca uma verdadeira divergência entre fé e razão,
porque o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a fé,
foi quem colocou também, no espírito humano, a luz da razão.
E Deus não poderia negar-Se a Si mesmo, pondo a verdade em
contradição com a verdade ».65
54.
Neste século, o Magistério voltou várias vezes ao mesmo
assunto, alertando contra a tentação racionalista. É neste
horizonte que se devem colocar as intervenções do Papa S.
Pio X, pondo em relevo como, na base do modernismo, havia
posições filosóficas de linha fenomenista, agnóstica e
imanentista.66 E
não se pode esquecer a importância que teve a rejeição
católica da filosofia marxista e do comunismo ateu.67
Sucessivamente, o Papa Pio XII fez ouvir a sua voz quando,
na carta encíclica Humani
generis, preveniu contra interpretações erróneas que
andavam ligadas com as teses do evolucionismo, do
existencialismo e do historicismo. Explicava ele que estas
teses não foram elaboradas nem eram propostas por teólogos,
mas tinham a sua origem « fora do redil de Cristo »; 68 acrescentava,
porém, que tais extravios não deviam ser liminarmente
rejeitados, mas examinados criticamente: « Ora, estas
tendências, que se afastam em medida desigual da recta via,
não podem ser ignoradas ou transcuradas pelos filósofos e
teólogos católicos, que têm o grave dever de defender a
verdade divina e humana, e de fazê-la penetrar na mente dos
homens. Pelo contrário, devem conhecer bem estas opiniões,
quer porque as doenças não podem ser curadas, se primeiro
não são bem conhecidas, quer porque algumas vezes mesmo nas
afirmações falsas se esconde um pouco de verdade, quer
finalmente porque os próprios erros forçam a nossa mente a
investigar e a perscrutar, com maior diligência, certas
verdades filosóficas e teológicas ».69
Por
último, também a Congregação da Doutrina da Fé, no
cumprimento do seu múnus específico ao serviço do magistério
universal do Romano Pontífice, 70 teve
de intervir para sublinhar o perigo que comportava a
assunção acrítica, feita por alguns teólogos da libertação,
de teses e metodologias provenientes do marxismo. 71
Vemos
assim que, no passado, o Magistério exerceu reiteradamente e
sob diversas modalidades o discernimento em matéria
filosófica. Aquilo que os meus Venerados Predecessores
enunciaram, constitui um contributo precioso que não pode
ser esquecido.
55. Se
observarmos a situação actual, constatamos que os problemas
retornam, mas com peculiaridades novas. Já não se trata de
questões que interessam apenas a indivíduos ou grupos, mas
de convicções tão generalizadas no ambiente que se tornam,
em certa medida, mentalidade comum. Tal é, por exemplo, a
desconfiança radical na razão, que evidenciam as conclusões
mais recentes de muitos estudos filosóficos. De várias
partes ouviu-se falar, a este respeito, de « fim da
metafísica »: querem que a filosofia se contente com tarefas
mais modestas, tais como a mera interpretação dos factos ou
apenas a investigação sobre determinados campos do saber
humano ou das suas estruturas.
Também, na teologia, voltam a assomar as tentações de
outrora. Por exemplo, em algumas teologias contemporâneas
comparece novamente um certo racionalismo,
principalmente quando asserções, consideradas
filosoficamente fundadas, são tomadas como normativas para a
investigação teológica. Isto sucede sobretudo quando o
teólogo, por falta de competência filosófica, se deixa
condicionar de modo acrítico por afirmações que já entraram
na linguagem e cultura corrente, mas carecem de suficiente
base racional. 72
Não
faltam também perigosas recaídas no fideísmo,
que não reconhece a importância do conhecimento racional e
do discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor,
para a própria possibilidade de acreditar em Deus. Uma
expressão, hoje generalizada, desta tendência fideísta é o «
biblicismo », que tende a fazer da leitura da Sagrada
Escritura, ou da sua exegese, o único referencial da
verdade. Assim, acaba-se por identificar a palavra de Deus
só com a Sagrada Escritura, anulando deste modo a doutrina
da Igreja que o Concílio Ecuménico Vaticano II expressamente
reafirmou. Com efeito, a constituição Dei
Verbum, depois de recordar que a palavra de Deus está
presente tanto nos textos sagrados como na Tradição, 73 afirma
sem rodeios: « A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura
constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus,
confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo
persevera unido aos seus Pastores na doutrina dos Apóstolos
».74 Portanto,
a Sagrada Escritura não constitui, para a Igreja, a sua
única referência; a « regra suprema da sua fé » 75 provém
efectivamente da unidade que o Espírito estabeleceu entre a
Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da
Igreja, numa reciprocidade tal que os três não podem
subsistir de maneira independente.76
Além
disso, não se deve subestimar o perigo que existe quando se
quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a
aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade
de uma exegese mais ampla que permita o acesso, em união com
toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os que se
dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer
que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua
base uma concepção filosófica: é preciso examiná-las com
grande discernimento, antes de as aplicar aos textos
sagrados.
Outras
formas de fideísmo latente podem-se identificar na pouca
consideração que é reservada à teologia especulativa, e
ainda no desprezo pela filosofia clássica, de cujas noções
provieram os termos para exprimir tanto a compreensão da fé
como as próprias formulações dogmáticas. O Papa Pio XII, de
veneranda memória, alertou contra este esquecimento da
tradição filosófica e abandono das terminologias
tradicionais. 77
56.
Constata-se, enfim, uma generalizada desconfiança
relativamente a asserções globais e absolutas sobretudo da
parte de quem pensa que a verdade resulte do consenso, e não
da conformidade do intelecto com a realidade objectiva.
Compreende-se que, num mundo subdividido em tantos campos de
especializações, se torne difícil reconhecer aquele sentido
total e último da vida que tradicionalmente a filosofia
procurava. Mas nem por isso posso, à luz da fé que reconhece
em Jesus Cristo tal sentido último, deixar de encorajar os
filósofos, cristãos ou não, a terem confiança nas
capacidades da razão humana e a não prefixarem metas
demasiado modestas à sua investigação filosófica. A lição da
história deste milénio, quase a terminar, testemunha que a
estrada a seguir é esta: não perder a paixão pela verdade
última, nem o anseio de pesquisa, unidos à audácia de
descobrir novos percursos. É a fé que incita a razão a sair
de qualquer isolamento e a abraçar de bom grado qualquer
risco por tudo o que é belo, bom e verdadeiro. Deste modo, a
fé torna-se advogada convicta e convincente da razão.
2. Solicitude
da Igreja pela filosofia
57. O
Magistério, porém, não se limitou a pôr em destaque os erros
e desvios das doutrinas filosóficas. Mas, com igual cuidado,
quis confirmar os princípios fundamentais para uma genuína
renovação do pensamento filosófico, indicando mesmo
percursos concretos a seguir. Nesta linha, o Papa Leão XIII,
com a carta encíclica Æterni
Patris, realizou um passo de alcance verdadeiramente
histórico na vida da Igreja. Efectivamente aquela constitui,
até ao dia de hoje, o único documento pontifício dedicado, a
esse nível, inteiramente à filosofia. O grande Pontífice
retomou e desenvolveu a doutrina do Concílio Vaticano I
sobre a relação entre fé e razão, mostrando como o
pensamento filosófico é um contributo fundamental para a fé
e para a ciência teológica. 78 Passado
mais de um século, muitas indicações, lá contidas, nada
perderam do seu interesse tanto do ponto de vista prático
como pedagógico; a primeira de todas é a que diz respeito ao
valor incomparável da filosofia de S. Tomás. A reposição do
pensamento do Doutor Angélico era vista pelo Papa Leão XIII
como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia
conforme às exigências da fé. S. Tomás, escrevia ele, « ao
mesmo tempo que, como é devido, distingue perfeitamente a fé
da razão, une-as a ambas com laços de amizade recíproca:
conserva os direitos próprios de cada uma e salvaguarda a
sua dignidade ».79
58.
São conhecidas as felizes consequências que teve este
convite pontifício. Os estudos sobre o pensamento de S.
Tomás e doutros autores escolásticos receberam novo
incentivo. Foi dado um forte impulso aos estudos históricos,
de que resultou uma nova descoberta das riquezas do
pensamento medieval, até então amplamente desconhecidas, e
constituíram-se novas escolas tomistas. Com a aplicação da
metodologia histórica, fizeram-se grandes progressos no
conhecimento da obra de S. Tomás, e muitos foram os
estudiosos que corajosamente introduziram a tradição tomista
nas discussões dos problemas filosóficos e teológicos
daquele tempo. Os teólogos católicos mais influentes deste
século, a cuja reflexão e pesquisa muito deve o Concílio
Vaticano II, são filhos de tal renovação da filosofia
tomista. E assim a Igreja pôde, no decurso do século XX,
dispor dum vigoroso grupo de pensadores, formados na escola
do Doutor Angélico.
59.
Contudo, a renovação tomista e neotomista não foi o único
sinal de retoma do pensamento filosófico na cultura de
inspiração cristã. Já antes, e contemporâneamente ao convite
do Papa Leão XIII, tinham surgido vários filósofos católicos
que, valendo-se de correntes de pensamento mais recentes e
com uma metodologia própria, geraram obras filosóficas de
grande influência e valor duradouro. Houve quem tivesse
organizado sínteses de nível tão alto que nada tinham a
invejar aos grandes sistemas do idealismo, e quem pusesse as
bases epistemológicas para uma nova exposição da fé, à luz
de uma renovada compreensão da consciência moral; houve quem
tivesse elaborado uma filosofia que, partindo da análise da
imanência, abria o caminho para o transcendente, e quem
tentasse traduzir as exigências da fé no horizonte da
metodologia fenomenológica. Em suma, partindo de diversas
perspectivas, continuou-se a elaborar formas de reflexão
filosófica, que visavam manter viva a grande tradição do
pensamento cristão na unidade de fé e razão.
60. O
Concílio Ecuménico Vaticano II, por sua vez, apresenta uma
doutrina muito rica e fecunda a propósito da filosofia. Não
posso esquecer, sobretudo no contexto desta carta encíclica,
que um capítulo inteiro da constituição Gaudium
et spes constitui
uma espécie de compêndio de antropologia bíblica, fonte de
inspiração também para a filosofia. Naquelas páginas,
trata-se do valor da pessoa humana criada à imagem de Deus,
indicam-se os motivos da sua dignidade e superioridade
relativamente ao resto da criação, e mostra-se a capacidade
transcendente da sua razão. 80 Na
referida Constituição conciliar, considera-se também o
problema do ateísmo e denunciam-se, juntamente com suas
causas, os erros desta visão filosófica, sobretudo no que
diz respeito à dignidade inalienável da pessoa e da sua
liberdade. 81 E
um profundo significado filosófico reveste também o ponto
culminante daquelas páginas, que transcrevia já na minha
primeira carta encíclica, a Redemptor
hominis, e mantive como um dos pontos de referência
constante no meu magistério: « Na realidade, o mistério do
homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece
verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente
figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo
Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor,
revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação
sublime ». 82
O
Concílio ocupou-se também do estudo da filosofia, ao qual se
devem dedicar os candidatos ao sacerdócio; são recomendações
que se podem generalizar a todo o ensino cristão. Afirma-se
num dos documentos conciliares: « As disciplinas filosóficas
sejam ensinadas de forma que os alunos possam adquirir,
antes de mais, um conhecimento sólido e coerente do homem,
do mundo e de Deus, apoiados num património filosófico
perenemente válido, tendo em conta as investigações
filosóficas dos tempos actuais »83
Estas
directrizes foram depois retomadas e especificadas noutros
documentos do Magistério, com o intuito de garantir uma
sólida formação filosófica sobretudo àqueles que se preparam
para os estudos teológicos. Também eu sublinhei, em várias
ocasiões, a importância desta formação filosófica para todos
os que, um dia, terão de enfrentar, na vida pastoral, as
questões do mundo actual e individuar as causas de
determinados comportamentos, a fim de lhes dar pronta
resposta. 84
61. Se
foi necessário intervir, em diversas circunstâncias, sobre
este tema, reiterando o valor das intuições do Doutor
Angélico e insistindo a favor da aquisição do seu
pensamento, isso ficou a dever-se também ao facto de não
terem sido sempre observadas as directrizes do Magistério,
com a solicitude desejada. De facto, nos anos posteriores ao
Concílio Vaticano II, pôde observar-se, em muitas escolas
católicas, um certo declínio nesta matéria, devido à menor
estima sentida não apenas pela filosofia escolástica, mas
pelo estudo da filosofia em geral. Com surpresa e mágoa,
tenho de constatar que vários teólogos compartilham este
desinteresse pelo estudo da filosofia.
Na
base desta indiferença, há diversas razões. Em primeiro
lugar, aquela falta de confiança na razão que se manifesta
em grande parte da filosofia contemporânea, abandonando em
larga escala a investigação metafísica das questões últimas
do homem para concentrar a sua atenção sobre problemas
particulares e regionais, às vezes puramente formais.
Depois, há que acrescentar o equívoco que se gerou sobretudo
a respeito das « ciências humanas ». O Concílio Vaticano II
afirmou, várias vezes, o valor positivo da pesquisa
científica para um conhecimento mais profundo do mistério do
homem. 85 Mas,
o convite dirigido aos teólogos para conhecerem estas
ciências e, se vier a propósito, aplicá-las correctamente
nos seus estudos, não deve ser interpretado como uma
implícita autorização para marginalizar a filosofia, pondo-a
de parte na formação pastoral e napræparatio fidei.
E, finalmente, não se pode esquecer o interesse novamente
sentido pela inculturação da fé. Em particular, a vida das
jovens Igrejas permitiu descobrir, ao lado de formas
elevadas de pensamento, a presença de múltiplas expressões
de sabedoria popular. Isto constitui um autêntico património
de cultura e de tradições. Todavia, o estudo dos costumes
tradicionais deve ser acompanhado simultaneamente pela
pesquisa filosófica. Será esta que possibilitará fazer
sobressair os traços positivos da sabedoria popular, criando
a necessária ligação com o anúncio do Evangelho.86
62.
Desejo insistir novamente que o estudo da filosofia reveste
um carácter fundamental e indispensável na estrutura dos
estudos teológicos e na formação dos candidatos ao
sacerdócio. Não é por acaso que o currículo dos estudos
teológicos é antecedido por um período de tempo
especialmente consagrado ao estudo da filosofia. Esta
decisão, confirmada pelo Concílio Ecuménico Lateranense V, 87 tem
as suas raízes na experiência maturada durante a Idade
Média, quando foi posta em relevo a importância de uma
harmonia construtiva entre o saber filosófico e o teológico.
Esta organização dos estudos influenciou, facilitou e
promoveu, embora de forma indirecta, uma boa parte do
progresso da filosofia moderna. Temos um exemplo
significativo na influência exercida pelasDisputationes
metaphysicæ de
Francisco Suárez, que eram seguidas até mesmo nas
universidades luteranas da Alemanha. Pelo contrário, o
abandono desta metodologia foi causa de graves carências,
tanto na formação sacerdotal como na investigação teológica.
Basta considerar, por exemplo, como a sua negligência no
âmbito do pensamento e da cultura moderna levou ao
encerramento de toda a forma de diálogo ou à recepção
indiscriminada de qualquer filosofia.
Nutro
profunda esperança de que estas dificuldades serão superadas
mercê de uma sábia formação filosófica e teológica, que
nunca deve faltar na Igreja.
63. Em
virtude das razões aduzidas, senti a urgência de confirmar,
por meio desta carta encíclica, o grande interesse que a
Igreja tem pela filosofia; ou melhor, a ligação íntima do
trabalho teológico com a investigação filosófica da verdade.
Daqui nasce o dever que o Magistério tem de discernir e
estimular um pensamento filosófico que não esteja em
dissonância com a fé. A minha missão é propor alguns
princípios e pontos de referência, que considero necessários
para se poder instaurar uma relação harmoniosa e eficaz
entre a teologia e a filosofia. À luz deles, será possível
discernir com maior clareza se e como deve a teologia
relacionar-se com os diversos sistemas ou asserções
filosóficas que o mundo actual apresenta.
CAPÍTULO VI - INTERACÇÃO DA TEOLOGIA COM A FILOSOFIA
1. A
ciência da fé e as exigências da razão filosófica
64. A
palavra de Deus destina-se a todo o homem, de qualquer época
e lugar da terra; e o homem, por natureza, é filósofo. Por
sua vez, a teologia, enquanto elaboração reflexiva e
científica da compreensão da palavra divina à luz da fé, não
pode deixar de recorrer às filosofias que vão surgindo ao
longo da história, tanto para algumas das suas formas de
proceder como para realizar funções mais específicas. Sem
pretender indicar aos teólogos metodologias particulares —
porque tal não compete ao Magistério —, desejo, porém,
lembrar algumas funções próprias da teologia, onde, por
causa da própria natureza da Palavra revelada, se exige o
recurso ao pensamento filosófico.
65. A
teologia está organizada, enquanto ciência da fé, à luz dum
duplo princípio metodológico: auditus fidei e intellectus
fidei. Com o primeiro, recolhe os conteúdos da Revelação
tal como se foram explicitando progressivamente na Sagrada
Tradição, na Sagrada Escritura e no Magistério vivo da
Igreja. 88 Pelo
segundo, a teologia quer responder às exigências próprias do
pensamento, através da reflexão especulativa.
Quanto
à preparação para um correcto auditus
fidei, a filosofia proporciona à teologia a sua ajuda
peculiar, quando examina a estrutura do conhecimento e da
comunicação pessoal, e sobretudo as várias formas e funções
da linguagem. Igualmente importante é a contribuição da
filosofia para uma compreensão mais coerente da Tradição
eclesial, das intervenções do Magistério e das sentenças dos
grandes mestres da teologia: estes, de facto, exprimem-se
frequentemente por conceitos e formas de pensamento
conotados com determinada tradição filosófica. Neste caso,
pede-se ao teólogo não só que exponha conceitos e termos
através dos quais a Igreja possa reflectir e elaborar a sua
doutrina, mas que conheça profundamente também os sistemas
filosóficos que tenham, porventura, influenciado as noções e
a terminologia, a fim de se chegar a interpretações
correctas e coerentes.
66.
Relativamente ao intellectus
fidei, importa considerar, antes de mais, que a Verdade
divina, « que nos é proposta nas Sagradas Escrituras,
interpretadas correctamente pela doutrina da Igreja »,89 goza
de uma inteligibilidade própria, logicamente tão coerente
que se deve propor como um autêntico saber. O intellectus
fidei explicita
esta verdade, não só quando investiga as estruturas lógicas
e conceptuais das proposições em que se articula a doutrina
da Igreja, mas também e sobretudo quando põe em realce o
significado salvífico de tais proposições para o indivíduo e
para a humanidade. É pelo conjunto destas proposições que o
crente chega a conhecer a história da salvação, que culmina
na pessoa de Jesus Cristo e no seu mistério pascal; ele
participa deste mistério, com a sua adesão de fé.
A teologia
dogmática deve
ser capaz de articular o sentido universal do mistério de
Deus, Uno e Trino, e da economia da salvação, quer de modo
narrativo, quer sobretudo de forma argumentativa. Por outras
palavras, deve fazê-lo mediante expressões conceptuais,
formuladas de modo crítico e universalmente acessível. De
facto, sem o contributo da filosofia não seria possível
ilustrar certos conteúdos teológicos como, por exemplo, a
linguagem sobre Deus, as relações pessoais no seio da
Santíssima Trindade, a acção criadora de Deus no mundo, a
relação entre Deus e o homem, a identidade de Cristo que é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E o mesmo se diga de
diversos temas da teologia moral, onde é preciso recorrer,
de imediato, a conceitos como lei moral, consciência,
liberdade, responsabilidade pessoal, culpa, etc., cuja
definição provém da ética filosófica.
Por
isso, é necessário que a razão do crente tenha um
conhecimento natural, verdadeiro e coerente das coisas
criadas, do mundo e do homem, que são também objecto da
revelação divina; mais ainda, ela deve ser capaz de
articular este conhecimento de maneira conceptual e
argumentativa. Assim, a teologia dogmática especulativa
pressupõe e implica uma filosofia do homem, do mundo e, mais
radicalmente, do próprio ser, fundada sobre a verdade
objectiva.
67. A teologia
fundamental, pelo seu próprio carácter de disciplina que
tem por função dar razão da fé (cf. 1
Ped 3, 15),
deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a fé
e a reflexão filosófica. Já o Concílio Vaticano I,
reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rom 1,
19-20), chamara a atenção para o facto de existirem verdades
que se podem conhecer de modo natural e, consequentemente,
filosófico. O seu conhecimento constitui um pressuposto
necessário para acolher a revelação de Deus. Quando a
teologia fundamental estuda a Revelação e a sua
credibilidade com o relativo acto de fé, deverá mostrar como
emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas verdades que
a razão, autonomamente, já encontra ao longo do seu caminho
de pesquisa. A essas verdades, a Revelação confere-lhes
plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do
mistério revelado, onde encontram o seu fim último. Basta
pensar, por exemplo, ao conhecimento natural de Deus, à
possibilidade de distinguir a revelação divina de outros
fenómenos, ou ao conhecimento da sua credibilidade, à
capacidade que tem a linguagem humana de falar, de modo
significativo e verdadeiro, mesmo do que ultrapassa a
experiência humana. Por todas estas verdades, a mente é
levada a reconhecer a existência duma via realmente
propedêutica à fé, que pode desembocar no acolhimento da
Revelação, sem faltar minimamente aos seus próprios
princípios e autonomia. 90
Da
mesma forma, a teologia fundamental deverá manifestar a
compatibilidade intrínseca entre a fé e a sua exigência
essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar
com plena liberdade o seu consentimento. Assim, a fé saberá
« mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera
da verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se
basear na razão, decerto não pode existir sem ela; ao mesmo
tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na
fé, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não
poderia chegar ». 91
68. A teologia
moral tem,
possivelmente, uma necessidade ainda maior do contributo
filosófico. Na Nova Aliança, a vida humana está
efectivamente muito menos regulada por prescrições do que na
Antiga. A vida no Espírito conduz os crentes a uma liberdade
e responsabilidade que ultrapassam a própria Lei. No
entanto, o Evangelho e os escritos apostólicos não deixam de
propor ora princípios gerais de conduta cristã, ora
ensinamentos e preceitos específicos; para aplicá-los às
circunstâncias concretas da vida individual e social, o
cristão tem necessidade de valer-se plenamente da sua
consciência e da força do seu raciocínio. Por outras
palavras, a teologia moral deve recorrer a uma visão
filosófica correcta tanto da natureza humana e da sociedade,
como dos princípios gerais duma decisão ética.
69.
Talvez se possa objectar que, na situação actual, o teólogo,
mais do que à filosofia, deveria recorrer à ajuda de outras
formas do saber humano, concretamente à história e sobretudo
às ciências, de que todos admiram os progressos
extraordinários recentemente alcançados. Outros, impelidos
por uma maior sensibilidade à relação entre fé e culturas,
defendem que a teologia deveria dar preferência às
sabedorias tradicionais, em vez de uma filosofia de origem
grega e eurocêntrica. Outros ainda, partindo duma concepção
errada do pluralismo de culturas, negam simplesmente o valor
universal do património filosófico abraçado pela Igreja.
Os
aspectos sublinhados, já presentes aliás na doutrina
conciliar, 92 contêm
uma parte de verdade. O referimento às ciências, útil em
muitos casos porque permite um conhecimento mais completo do
objecto de estudo, não deve, porém, fazer esquecer a
necessidade que há da mediação duma reflexão tipicamente
filosófica, crítica e aberta ao universal, solicitada também
por um fecundo intercâmbio entre as culturas. A minha
preocupação é pôr em destaque o dever de não se ficar pelo
caso isolado e concreto, descuidando assim a tarefa primária
que é manifestar o carácter universal do conteúdo de fé.
Além disso, não se deve esquecer que a peculiar contribuição
do pensamento filosófico permite discernir, tanto nas
diversas concepções da vida como nas culturas, « não o que
os homens pensam, mas qual é a verdade objectiva ». 93 Não
as diversas opiniões humanas, mas somente a verdade pode
servir de ajuda à filosofia.
70.
Além do mais, o tema da relação com as culturas merece uma
reflexão específica, apesar de necessariamente não
exaustiva, pelas implicações que daí derivam para as
vertentes filosófica e teológica. O processo de encontro e
comparação com as culturas é uma experiência que a Igreja
viveu desde os começos da pregação do Evangelho. O mandato
de Cristo aos discípulos para irem, a toda a parte « até aos
confins do mundo » (Act 1,
8), transmitir a verdade revelada por Ele, fez com que a
comunidade cristã pudesse bem cedo dar-se conta da
universalidade do anúncio e dos obstáculos resultantes da
diversidade das culturas. Um trecho da carta de S. Paulo aos
cristãos de Éfeso oferece uma válida ajuda para compreender
como a Comunidade Primitiva enfrentou este problema. Escreve
o Apóstolo: « Agora porém, vós, que outrora estáveis longe,
pelo Sangue de Cristo vos aproximastes. Ele é a nossa paz,
Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de
inimizade que os separava » (2, 13-14).
Iluminada por este texto, a nossa reflexão pode debruçar-se
sobre a transformação que se operou nos gentios quando
abraçaram a fé. As barreiras que separam as diversas
culturas caem diante da riqueza da salvação, realizada por
Cristo. Agora, em Cristo, a promessa de Deus torna-se uma
oferta universal: não limitada já à dimensão particular de
um povo, da sua língua ou dos seus costumes, mas alargada a
todos, como um património ao qual cada um pode livremente
ter acesso. Dos mais diversos lugares e tradições, todos são
chamados, em Cristo, a participar na unidade da família dos
filhos de Deus. Cristo faz com que dois povos se tornem « um
só ». Os que « estavam longe » ficaram « próximo », graças à
novidade gerada pelo mistério pascal. Jesus abate os muros
de divisão e realiza a unificação, de um modo original e
supremo, por meio da participação no seu mistério. Esta
unidade é tão profunda que a Igreja pode dizer com S. Paulo:
« Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos
dos santos e membros da família de Deus » (Ef 2,
19).
Nesta
asserção tão simples, está contida uma grande verdade: o
encontro da fé com as diversas culturas deu vida a uma nova
realidade. Na verdade, quando as culturas estão
profundamente radicadas na natureza humana, contêm em si
mesmas o testemunho da abertura, própria do homem, ao
universal e à transcendência. É por isso que elas apresentam
perspectivas distintas da verdade, que são de evidente
utilidade para o homem, porque lhe fazem vislumbrar valores
capazes de tornar a sua existência sempre mais humana. 94 Por
outro lado, na medida em que evocam os valores das tradições
antigas, as culturas trazem consigo — embora de modo
implícito, mas nem por isso menos real — a referência à
manifestação de Deus na natureza, como se viu antes nos
textos sapienciais e no ensinamento de S. Paulo.
71.
Uma vez que as culturas estão intimamente relacionadas com
os homens e a sua história, partilham das mesmas dinâmicas
do tempo humano. E, consequentemente, registam
transformações e progressos com os encontros que os homens
promovem e com as recíprocas transmissões dos seus modelos
de vida. As culturas alimentam-se com a comunicação de
valores, e a sua vitalidade e subsistência dependem da sua
capacidade de permanecerem abertas para acolher a novidade.
Como se explicam tais dinâmicas? Todo o homem está integrado
numa cultura; depende dela, e sobre ela influi. É
simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido.
Em cada manifestação da sua vida, o homem traz consigo algo
que o caracteriza no meio da criação: a sua constante
abertura ao mistério e o seu desejo inexaurível de
conhecimento. Em consequência, cada cultura traz gravada em
si mesma e deixa transparecer a tensão para uma plenitude.
Pode-se, portanto, dizer que a cultura contém em si própria
a possibilidade de acolher a revelação divina.
Também
o modo como os cristãos vivem a fé, está imbuído da cultura
do ambiente circundante, e vai progressivamente
contribuindo, por sua vez, para modelar as características
do mesmo. Os cristãos transmitem, a cada cultura, a verdade
imutável que Deus revelou na história e na cultura dum povo.
Ao longo dos séculos, continua a reproduzir-se o mesmo
fenómeno testemunhado pelos peregrinos presentes em
Jerusalém, no dia de Pentecostes. Ao escutarem os Apóstolos,
perguntavam-se: « Mas quê! Essa gente que está a falar não é
da Galileia? Que se passa, então, para que cada um de nós os
oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas,
habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do
Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das
regiões da Líbia, vizinha de Cirene, colonos de Roma, judeus
e prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los anunciar nas
nossas línguas as maravilhas de Deus! » (Act 2,
7-11). O anúncio do Evangelho nas diversas culturas, ao
exigir de cada um dos destinatários a adesão da fé, não os
impede de conservar a própria identidade cultural. Isto não
provoca qualquer divisão, pois o povo dos baptizados
distingue-se por uma universalidade que é capaz de acolher
todas as culturas, fazendo com que aquilo que nelas está
implícito se desenvolva até à sua explanação plena na
verdade.
Em
consequência disto, uma cultura nunca pode servir de
critério de juízo e, menos ainda, de critério último de
verdade a respeito da revelação de Deus. O Evangelho não é
contrário a esta ou àquela cultura, como se quisesse, ao
encontrar-se com ela, privá-la daquilo que lhe pertence, e a
obrigasse a assumir formas extrínsecas que lhe são
estranhas. Pelo contrário, o anúncio que o crente leva ao
mundo e às culturas é uma forma real de libertação de toda a
desordem introduzida pelo pecado e, simultaneamente, uma
chamada à verdade plena. Neste encontro, as culturas não são
privadas de nada, antes são estimuladas a abrirem-se à
novidade da verdade evangélica, de que recebem impulso para
novos progressos.
72. O
facto da missão evangelizadora ter encontrado em primeiro
lugar no seu caminho a filosofia grega, não constitui de
forma alguma impedimento para outros relacionamentos. Hoje,
à medida que o Evangelho entra em contacto com áreas
culturais que estiveram até agora fora do âmbito de
irradiação do cristianismo, novas tarefas se abrem à
inculturação. Colocam-se à nossa geração problemas análogos
aos que a Igreja teve de enfrentar nos primeiros séculos.
O meu
pensamento vai espontaneamente até às terras do Oriente, tão
ricas de tradições religiosas e filosóficas muito antigas.
Entre elas, ocupa um lugar especial a Índia. Um grande
ímpeto espiritual leva o pensamento indiano a procurar uma
experiência que, libertando o espírito dos condicionamentos
de tempo e espaço, tenha valor de absoluto. No dinamismo
desta busca de libertação, situam-se grandes sistemas
metafísicos.
Compete aos cristãos de hoje, sobretudo aos da Índia, a
tarefa de extrair deste rico património os elementos
compatíveis com a sua fé, para se obter um enriquecimento do
pensamento cristão. Nesta obra de discernimento, que tem a
sua fonte de inspiração na declaração conciliar Nostra
aetate, deverão ter em consideração um certo número de
critérios. O primeiro é a universalidade do espírito humano,
cujas exigências fundamentais são idênticas nas mais
distintas culturas. O segundo, derivado do anterior,
consiste no seguinte: quando a Igreja entra em contacto com
grandes culturas que nunca tinha encontrado antes, não pode
pôr de parte o que adquiriu pela inculturação no pensamento
greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria contrariar o
desígnio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos
caminhos do tempo e da história. Aliás, este critério é
válido para a Igreja de todos os tempos — também para a
Igreja de amanhã, que se sentirá enriquecida com as
aquisições resultantes do encontro em nossos dias com as
culturas orientais, e desta herança há-de tirar, por sua
vez, indicações novas para entrar frutuosamente em diálogo
com as culturas que a humanidade fizer florir no seu caminho
rumo ao futuro. Em terceiro lugar, há-de precaver-se por não
confundir a legítima reivindicação de especificidade e
originalidade do pensamento indiano, com a ideia de que uma
tradição cultural deve enclausurar-se na sua diferença e
afirmar-se pela sua oposição às outras tradições — ideia
essa que seria contrária precisamente à natureza do espírito
humano.
O que
fica dito para a Índia, vale também para a herança das
grandes culturas da China, do Japão e demais países da Ásia,
bem como das riquezas das culturas tradicionais da África,
transmitidas sobretudo por via oral.
73. À
luz destas considerações, a justa relação que se deve
instaurar entre a teologia e a filosofia há-de ser pautada
por uma reciprocidade circular. Quanto à teologia, o seu
ponto de partida e fonte primeira terá de ser sempre a
palavra de Deus revelada na história, ao passo que o
objectivo final só poderá ser uma compreensão cada vez mais
profunda dessa mesma palavra por parte das sucessivas
gerações. Visto que a palavra de Deus é Verdade (cf. Jo 17,
17), uma melhor compreensão dela só tem a beneficiar com a
busca humana da verdade, ou seja, o filosofar, no respeito
das leis que lhe são próprias. Não se trata simplesmente de
utilizar, no raciocínio teológico, qualquer conceito ou
parcela dum sistema filosófico; o facto decisivo é que a
razão do crente exerce as suas capacidades de reflexão na
busca da verdade, dentro dum movimento que, partindo da
palavra de Deus, procura alcançar uma melhor compreensão da
mesma. É claro, de resto, que a razão, movendo-se dentro
destes dois pólos — palavra de Deus e melhor conhecimento
desta —, encontra-se prevenida, e de algum modo guiada, para
evitar percursos que poderiam conduzi-la fora da Verdade
revelada e, em última análise, fora pura e simplesmente da
verdade; mais ainda, ela sente-se estimulada a explorar
caminhos que, sozinha, nem sequer suspeitaria de poder
percorrer. Esta relação de reciprocidade circular com a
Palavra de Deus enriquece a filosofia, porque a razão
descobre horizontes novos e inesperados.
74. A
prova da fecundidade de tal relação é oferecida pela própria
vida de grandes teólogos cristãos que se distinguiram também
como grandes filósofos, deixando escritos de tamanho valor
especulativo que justificam ser colocados ao lado dos
grandes mestres da filosofia antiga. Isto é válido tanto
para os Padres da Igreja, de entre os quais há que citar
pelo menos os nomes de S. Gregório Nazianzeno e S.
Agostinho, como para os Doutores medievais entre os quais
sobressai a grande tríade formada por S. Anselmo, S.
Boaventura e S. Tomás de Aquino. A relação entre a filosofia
e a palavra de Deus manifesta-se fecunda também na
investigação corajosa realizada por pensadores mais
recentes, de entre os quais me apraz mencionar, no âmbito
ocidental, personagens como John Henry Newman, António
Rosmini, Jacques Maritain, Étienne Gilson, Edith Stein, e,
no âmbito oriental, estudiosos com a estatura de Vladimir S.
Solov'ev, Pavel A. Florenskij, Petr J. Caadaev, Vladimir N.
Losskij. Ao referir estes autores, ao lado dos quais outros
nomes poderiam ser citados, não tenciono obviamente dar aval
a todos os aspectos do seu pensamento, mas apenas propô-los
como exemplos significativos dum caminho de pesquisa
filosófica que tirou notáveis vantagens da sua confrontação
com os dados da fé. Uma coisa é certa: a consideração do
itinerário espiritual destes mestres não poderá deixar de
contribuir para o avanço na busca da verdade e na utilização
dos resultados conseguidos para o serviço do homem.
Espera-se que esta grande tradição filosófico-teológica
encontre, hoje e no futuro, os seus continuadores e
estudiosos para bem da Igreja e da humanidade.
2. Diferentes
estádios da filosofia
75.
Como consta da história das relações entre a fé e a
filosofia, apontada acima brevemente, podem distinguir-se
diversos estádios da filosofia relativamente à fé cristã. O
primeiro é a filosofia
totalmente independente da revelação evangélica: é o
estádio da filosofia, existente historicamente nas épocas
que precederam o nascimento do Redentor, e, mesmo depois
dele, nas regiões onde o Evangelho ainda não chegou. Nesta
situação, a filosofia apresenta a legítima aspiração de ser
um empreendimento autónomo,
ou seja, que procede segundo as suas próprias leis,
valendo-se simplesmente das forças da razão. Embora cientes
dos graves limites devidos à debilidade congénita da razão
humana, uma tal aspiração deve ser apoiada e fortalecida. De
facto, o trabalho filosófico, como busca da verdade no
âmbito natural, pelo menos implicitamente permanece aberto
ao sobrenatural.
E,
mesmo quando é o próprio discurso teológico que se serve de
conceitos e argumentações filosóficas, a exigência de
correcta autonomia do pensamento há-de ser respeitada. Com
efeito, a argumentação conduzida segundo rigorosos critérios
racionais é garantia para a obtenção de resultados
universalmente válidos. Também aqui se verifica o princípio
segundo o qual a graça não destrói, mas aperfeiçoa a
natureza: a anuência de fé, que envolve a inteligência e a
vontade, não destrói mas aperfeiçoa o livre arbítrio do
crente, que acolhe em si próprio o dado revelado.
Desta
exigência em si mesma correcta, afasta-se nitidamente a
teoria da chamada filosofia « separada », sustentada por
vários filósofos modernos. Mais do que afirmação da justa
autonomia do filosofar, ela constitui a reivindicação duma
auto-suficiência do pensamento que é claramente ilegítima:
rejeitar as contribuições de verdade vindas da revelação
divina significa efectivamente impedir o acesso a um
conhecimento mais profundo da verdade, danificando
precisamente a filosofia.
76. Um
segundo estádio da filosofia é aquilo que muitos designam
com a expressão filosofia
cristã. A denominação, em si mesma, é legítima, mas não
deve dar margem a equívocos: com ela, não se pretende aludir
a uma filosofia oficial da Igreja, já que a fé enquanto tal
não é uma filosofia. Com aquela designação, deseja-se
sobretudo indicar um modo cristão de filosofar, uma reflexão
filosófica concebida em união vital com a fé. Por
conseguinte, não se refere simplesmente a uma filosofia
elaborada por filósofos cristãos que, na sua pesquisa,
quiseram não contradizer a fé. Quando se fala de filosofia
cristã, pretende-se abraçar todos aqueles importantes
avanços do pensamento filosófico que não seriam alcançados
sem a contribuição, directa ou indirecta, da fé cristã.
Assim,
a filosofia cristã contém dois aspectos: um subjectivo, que
consiste na purificação da razão por parte da fé. Esta,
enquanto virtude teologal, liberta a razão da presunção —
uma típica tentação a que os filósofos facilmente estão
sujeitos. Já S. Paulo e os Padres da Igreja, e mais
recentemente filósofos, como Pascal e Kierkegaard, a
estigmatizaram. Com a humildade, o filósofo adquire também a
coragem para enfrentar algumas questões que dificilmente
poderia resolver sem ter em consideração os dados recebidos
da Revelação. Basta pensar, por exemplo, aos problemas do
mal e do sofrimento, à identidade pessoal de Deus e à
questão acerca do sentido da vida, ou, mais diretamente, à
pergunta metafísica radical: « Porque existe o ser? ».
Temos,
depois, o aspecto objectivo, que diz respeito aos conteúdos:
a Revelação propõe claramente algumas verdades que, embora
sejam acessíveis à razão por via natural, possivelmente
nunca seriam descobertas por ela, se tivesse sido abandonada
a si própria. Colocam-se, neste horizonte, questões como o
conceito de um Deus pessoal, livre e criador, que tanta
importância teve para o progresso do pensamento filosófico
e, de modo particular, para a filosofia do ser. Pertence ao
mesmo âmbito a realidade do pecado, tal como é vista pela
luz da fé, e que ajuda a filosofia a enquadrar adequadamente
o problema do mal. Também a concepção da pessoa como ser
espiritual é uma originalidade peculiar da fé: o anúncio
cristão da dignidade, igualdade e liberdade dos homens
influiu seguramente sobre a reflexão filosófica, realizada
pelos filósofos modernos. Nos tempos mais recentes, pode-se
mencionar a descoberta da importância que tem, também para a
filosofia, o acontecimento histórico, centro da revelação
cristã. Não foi por acaso que aquele se tornou perne de uma
filosofia da história, que se apresenta como um novo
capítulo da busca humana da verdade.
Entre
os elementos objectivos da filosofia cristã, inclui-se
também a necessidade de explorar a racionalidade de algumas
verdades expressas pela Sagrada Escritura, tais como a
possibilidade de uma vocação sobrenatural do homem, e também
o próprio pecado original. São tarefas que induzem a razão a
reconhecer que existe a verdade e o racional, muito para
além dos limites estreitos onde ela seria tentada a
encerrar-se. Estas temáticas ampliam, de facto, o âmbito do
racional.
Ao
reflectirem sobre estes conteúdos, os filósofos não se
tornaram teólogos, já que não procuraram compreender e
ilustrar as verdades da fé a partir da Revelação;
continuaram a trabalhar no seu próprio terreno e com a sua
metodologia puramente racional, mas alargando a sua
investigação a novos âmbitos da verdade. Pode-se dizer que,
sem este influxo estimulante da palavra de Deus, boa parte
da filosofia moderna e contemporânea não existiria. O dado
mantém toda a sua relevância, mesmo diante da constatação
decepcionante de não poucos pensadores destes últimos
séculos que abandonaram a ortodoxia cristã.
77.
Outro estádio significativo da filosofia verifica-se quando
é a própria
teologia que chama
em causa a filosofia. Na verdade, a teologia sempre
teve, e continua a ter, necessidade da contribuição
filosófica. Realizado pela razão crítica à luz da fé, o
trabalho teológico pressupõe e exige, ao longo de toda a sua
pesquisa, uma razão conceptual e argumentativamente educada
e formada. Além disso, a teologia precisa da filosofia como
interlocutora, para verificar a inteligibilidade e a verdade
universal das suas afirmações. Não foi por acaso que os
Padres da Igreja e os teólogos medievais assumiram, para tal
função explicativa, filosofias não cristãs. Este facto
histórico indica o valor da autonomiaque
a filosofia conserva mesmo neste terceiro estádio, mas
mostra igualmente as transformações necessárias e profundas
que ela deve sofrer.
É
precisamente no sentido de uma contribuição indispensável e
nobre que a filosofia foi chamada, desde a Idade Patrística, ancilla
theologiæ. De facto, o título não foi atribuído para
indicar uma submissão servil ou um papel puramente funcional
da filosofia relativamente à teologia; mas no mesmo sentido
em que Aristóteles falava das ciências experimentais como «
servas » da « filosofia primeira ». A expressão, hoje
dificilmente utilizável devido aos princípios de autonomia
antes mencionados, foi usada ao longo da história para
indicar a necessidade da relação entre as duas ciências e a
impossibilidade de uma sua separação.
Se o
teólogo se recusasse a utilizar a filosofia, arriscar-se-ia
a fazer filosofia sem o saber e a fechar-se em estruturas de
pensamento pouco idóneas à compreensão da fé. Se o filósofo,
por sua vez, excluísse todo o contacto com a teologia,
ver-se-ia na obrigação de apoderar-se por conta própria dos
conteúdos da fé cristã, como aconteceu com alguns filósofos
modernos. Tanto num caso como noutro, surgiria o perigo da
destruição dos princípios básicos de autonomia que cada
ciência justamente quer ver garantidos.
O
estádio da filosofia agora considerado, devido às
implicações que comporta na compreensão da Revelação, está,
como acontece com a teologia, mais directamente colocado sob
a autoridade do Magistério e do seu discernimento, como
expus mais acima. Das verdades de fé derivam, efectivamente,
determinadas exigências que a filosofia deve respeitar,
quando entra em relação com a teologia.
78. À
luz destas reflexões, é fácil compreender porque tenha o
Magistério louvado reiteradamente os méritos do pensamento
de S. Tomás, e o tenha proposto como guia e modelo dos
estudos teológicos. O que interessava não era tomar posição
sobre questões propriamente filosóficas, nem impor a adesão
a teses particulares; o objectivo do Magistério era, e
continua a ser, mostrar como S. Tomás é um autêntico modelo
para quantos buscam a verdade. De facto, na sua reflexão, a
exigência da razão e a força da fé encontraram a síntese
mais elevada que o pensamento jamais alcançou, enquanto
soube defender a novidade radical trazida pela Revelação,
sem nunca humilhar o caminho próprio da razão.
79. Ao
explicitar melhor os conteúdos do Magistério precedente, é
minha intenção, nesta última parte, indicar algumas
exigências que a teologia — e, ainda antes, a palavra de
Deus — coloca, hoje, ao pensamento filosófico e às
filosofias actuais. Como já assinalei, o filósofo deve
proceder segundo as próprias regras e basear-se sobre os
próprios princípios; todavia, a verdade é uma só. A
Revelação, com os seus conteúdos, não poderá nunca humilhar
a razão nas suas descobertas e na sua legítima autonomia; a
razão, por sua vez, não deverá perder nunca a sua capacidade
de interrogar-se e de interrogar, consciente de não poder
arvorar-se em valor absoluto e exclusivo. A verdade
revelada, projectando plena luz sobre o ser a partir do
esplendor que lhe vem do próprio Ser subsistente, iluminará
o caminho da reflexão filosófica. Em resumo, a revelação
cristã torna-se o verdadeiro ponto de enlace e confronto
entre o pensar filosófico e o teológico, no seu recíproco
intercâmbio. Espera-se, pois, que teólogos e filósofos se
deixem guiar unicamente pela autoridade da verdade, para que
seja elaborada uma filosofia de harmonia com a palavra de
Deus. Esta filosofia será o terreno de encontro entre as
culturas e a fé cristã, o espaço de entendimento entre
crentes e não crentes. Ajudará os crentes a convencerem-se
mais intimamente de que a profundidade e a autenticidade da
fé saem favorecidas quando esta se une ao pensamento e não
renuncia a ele. Mais uma vez, encontramos nos Padres a lição
que nos guia nesta convicção: « Crer, nada mais é senão
pensar consentindo [...]. Todo o que crê, pensa; crendo
pensa, e pensando crê [...]. A fé, se não for pensada, nada
é ». 95 Mais:
« Se se tira o assentimento, tira-se a fé, pois, sem o
assentimento, realmente não se crê ». 96
CAPÍTULO VII - EXIGÊNCIAS E TAREFAS ACTUAIS
1. As
exigências irrenunciáveis da palavra de Deus
80. A
Sagrada Escritura contém, de forma explícita ou implícita,
toda uma série de elementos que permite alcançar uma
perspectiva de notável densidade filosófica acerca do homem
e do mundo. Os cristãos foram gradualmente tomando
consciência da riqueza contida naquelas páginas sagradas.
Delas se conclui que a realidade que experimentamos, não é o
absoluto: não é incriada, nem se autogerou. Só Deus é o
Absoluto. Nas páginas da Bíblia, o homem é visto como imago
Dei, que contém indicações precisas sobre o seu ser, a
sua liberdade e a imortalidade do seu espírito. Uma vez que
o mundo criado não é autosuficiente, qualquer ilusão de
autonomia que ignore a essencial dependência de Deus de toda
criatura — incluindo o homem — leva a dramas que destroem a
busca racional da harmonia e do sentido da existência
humana.
Também
o problema do mal moral — a forma mais trágica do mal — é
considerado na Bíblia, dizendo-nos que este não pode ser
reduzido a uma mera deficiência devida à matéria, mas é uma
ferida que provém de uma manifestação desordenada da
liberdade humana. Finalmente, a palavra de Deus apresenta o
problema do sentido da existência e revela a resposta para o
mesmo, encaminhando o homem para Jesus Cristo, o Verbo de
Deus encarnado, que realiza em plenitude a existência
humana. Poder-se-iam ainda explicitar outros aspectos da
leitura do texto sagrado; de qualquer modo, o que sobressai
é a rejeição de toda a forma de relativismo, materialismo,
panteísmo.
A
convicção fundamental desta « filosofia » presente na Bíblia
é que a vida humana e o mundo têm um sentido e caminham para
a sua plenitude, que se verifica em Jesus Cristo. O mistério
da Encarnação permanecerá sempre o centro de referência para
se poder compreender o enigma da existência humana, do mundo
criado, e mesmo de Deus. A filosofia encontra, neste
mistério, os desafios extremos, porque a razão é chamada a
assumir uma lógica que destrói as barreiras onde ela mesma
corre o risco de se fechar. Somente aqui, porém, o sentido
da existência alcança o seu ponto culminante. Com efeito,
torna-se inteligível a essência íntima de Deus e do homem:
no mistério do Verbo encarnado, são salvaguardadas a
natureza divina e a natureza humana, com sua respectiva
autonomia, e simultaneamente manifesta-se aquele vínculo
único que as coloca em mútuo relacionamento, sem confusão. 97
81.
Deve ter-se em conta que um dos dados mais salientes da
nossa situação actual consiste na « crise de sentido ». Os
pontos de vista, muitas vezes de carácter científico, sobre
a vida e o mundo multiplicaram-se tanto que estamos
efectivamente assistindo à afirmação crescente do fenómeno
da fragmentação do saber. É precisamente isto que torna
difícil e frequentemente vã a procura de um sentido. E, mais
dramático ainda, neste emaranhado de dados e de factos, em
que se vive e que parece constituir a própria trama da
existência, tantos se interrogam se ainda tem sentido pôr-se
a questão do sentido. A pluralidade das teorias que se
disputam a resposta, ou os diversos modos de ver e
interpretar o mundo e a vida do homem não fazem senão
agravar esta dúvida radical, que facilmente desemboca num
estado de cepticismo e indiferença ou nas diversas
expressões do niilismo.
Em
consequência disto, o espírito humano fica muitas vezes
ocupado por uma forma de pensamento ambíguo, que o leva a
encerrar-se ainda mais em si próprio, dentro dos limites da
própria imanência, sem qualquer referência ao transcendente.
Privada da questão do sentido da existência, uma filosofia
incorreria no grave perigo de relegar a razão para funções
meramente instrumentais, sem uma autêntica paixão pela busca
da verdade.
Para
estar em consonância com a palavra de Deus ocorre, antes de
mais, que a filosofia volte a encontrar a sua dimensão
sapiencial de
procura do sentido último e global da vida. Esta primeira
exigência, por sinal, constitui um estímulo utilíssimo para
a filosofia se conformar com a sua própria natureza. Deste
modo, ela não será apenas aquela instância crítica decisiva
que indica, às várias partes do saber científico, o seu
fundamento e os seus limites, mas representará também a
instância última de unificação do saber e do agir humano,
levando-os a convergirem para um fim e um sentido
definitivos. Esta dimensão sapiencial é ainda mais
indispensável hoje, uma vez que o imenso crescimento do
poder técnico da humanidade requer uma renovada e viva
consciência dos valores últimos. Se viesse a faltar a estes
meios técnicos a sua orientação para um fim não meramente
utilitarista, poderiam rapidamente revelar-se desumanos e
transformar-se mesmo em potenciais destrutores do género
humano. 98
A
palavra de Deus revela o fim último do homem, e dá um
sentido global à sua acção no mundo. Por isso, ela convida a
filosofia a empenhar-se na busca do fundamento natural desse
sentido, que é a religiosidade constitutiva de cada pessoa.
Uma filosofia que quisesse negar a possibilidade de um
sentido último e global, seria não apenas imprópria, mas
errónea.
82. De
resto, este papel sapiencial não poderia ser desempenhado
por uma filosofia que não fosse, ela própria, um autêntico e
verdadeiro saber, isto é, debruçado não só sobre os aspectos
particulares e relativos — sejam eles funcionais, formais ou
úteis — da realidade, mas sobre a verdade total e definitiva
desta, ou seja, sobre o próprio ser do objecto de
conhecimento. Daqui, uma segunda exigência: verificar a
capacidade do homem chegar ao conhecimento
da verdade; mais, um conhecimento que alcance a verdade
objectiva por meio daquela adæquatio
rei et intellectus, a que se referem os Doutores da
Escolástica. 99 Esta
exigência, própria da fé, foi explicitamente reafirmada pelo
Concílio Vaticano II: « A inteligência, de facto, não se
limita ao domínio dos fenómenos; embora, em consequência do
pecado, esteja parcialmente obscurecida e debilitada, ela é
capaz de atingir com certeza a realidade inteligível ». 100
Uma
filosofia, radicalmente fenomenista ou relativista,
revelar-se-ia inadequada para ajudar no aprofundamento da
riqueza contida na palavra de Deus. De facto, a Sagrada
Escritura sempre pressupõe que o homem, mesmo quando
culpável de duplicidade e mentira, é capaz de conhecer e
captar a verdade clara e simples. Nos Livros Sagrados, e de
modo particular no Novo Testamento, encontram-se textos e
afirmações de alcance propriamente ontológico. Os autores
inspirados, com efeito, quiseram formular afirmações
verdadeiras, isto é, capazes de exprimir a realidade
objectiva. Não se pode dizer que a tradição católica tenha
cometido um erro, quando entendeu alguns textos de S. João e
de S. Paulo como afirmações sobre o ser mesmo de Cristo.
Ora, quando a teologia procura compreender e explicar estas
afirmações, tem necessidade do auxílio duma filosofia que
não renegue a possibilidade de um conhecimento
objectivamente verdadeiro, embora sempre passível de
aperfeiçoamento. Isto vale também para os juízos da
consciência moral, que a Sagrada Escritura supõe ser
objectivamente verdadeiros. 101
83. As
duas exigências, já referidas, implicam uma terceira: ocorre
uma filosofia de alcanceautenticamente metafísico,
isto é, capaz de transcender os dados empíricos para chegar,
na sua busca da verdade, a algo de absoluto, definitivo,
básico. Trata-se duma exigência implícita tanto no
conhecimento de tipo sapiencial, como de carácter analítico;
de modo particular, é uma exigência própria do conhecimento
do bem moral, cujo fundamento último é o sumo Bem, o próprio
Deus. Não é minha intenção falar aqui da metafísica enquanto
escola específica ou particular corrente histórica; desejo
somente afirmar que a realidade e a verdade transcendem o
elemento factível e empírico, e quero reivindicar a
capacidade que o homem possui de conhecer esta dimensão
transcendente e metafísica de forma verdadeira e certa,
mesmo se imperfeita e analógica. Neste sentido, a metafísica
não deve ser vista como alternativa à antropologia, pois é
precisamente ela que permite dar fundamento ao conceito da
dignidade da pessoa, assente na sua condição espiritual. De
modo particular, a pessoa constitui um âmbito privilegiado
para o encontro com o ser e, consequentemente, com a
reflexão metafísica.
Em
toda a parte onde o homem descobre a presença dum apelo ao
absoluto e ao transcendente, lá se abre uma fresta para a
dimensão metafísica do real: na verdade, na beleza, nos
valores morais, na pessoa do outro, no ser, em Deus. Um
grande desafio, que nos espera no final deste milénio, é
saber realizar a passagem, tão necessária como urgente, do fenómeno ao fundamento.
Não é possível deter-se simplesmente na experiência; mesmo
quando esta exprime e manifesta a interioridade do homem e a
sua espiritualidade, é necessário que a reflexão
especulativa alcance a substância espiritual e o fundamento
que a sustenta. Portanto, um pensamento filosófico que
rejeitasse qualquer abertura metafísica, seria radicalmente
inadequado para desempenhar um papel de mediação na
compreensão da Revelação.
A
palavra de Deus alude continuamente a realidades que
ultrapassam a experiência e até mesmo o pensamento do homem;
mas, este « mistério » não poderia ser revelado, nem a
teologia poderia de modo algum torná-lo inteligível, 102 se
o conhecimento humano se limitasse exclusivamente ao mundo
da experiência sensível. Por isso, a metafísica constitui
uma intermediária privilegiada na pesquisa teológica. Uma
teologia, privada do horizonte metafísico, não conseguiria
chegar além da análise da experiência religiosa, não
permitindo ao intellectus
fidei exprimir
coerentemente o valor universal e transcendente da verdade
revelada.
Se
insisto tanto na componente metafísica, é porque estou
convencido de que este é o caminho obrigatório para superar
a situação de crise que aflige actualmente grandes sectores
da filosofia e, desta forma, corrigir alguns comportamentos
errados, difusos na nossa sociedade.
84. A
importância da instância metafísica torna-se ainda mais
evidente, quando se considera o progresso actual das
ciências hermenêuticas e das diferentes análises da
linguagem. Os resultados alcançados por estes estudos podem
ser muito úteis para a compreensão da fé, enquanto
manifestam a estrutura do nosso pensar e falar, e o sentido
presente na linguagem. Existem, porém, especialistas destas
ciências que tendem, nas suas pesquisas, a deter-se no modo
como se compreende e exprime a realidade, prescindindo de
verificar a possibilidade de a razão descobrir a essência da
mesma. Como não individuar neste comportamento uma
confirmação da crise de confiança, que a nossa época está a
atravessar, acerca das capacidades da razão? Além disso,
quando estas teses, baseando-se em convicções apriorísticas,
tendem a ofuscar os conteúdos da fé ou a negar a sua
validade universal, então não só humilham a razão, mas
colocam-se por si mesmas fora de jogo. De facto, a fé
pressupõe claramente que a linguagem humana seja capaz de
exprimir de modo universal — embora em termos analógicos,
mas nem por isso menos significativos — a realidade divina e
transcendente. 103 Se
assim não fosse, a palavra de Deus, que é sempre palavra
divina em linguagem humana, não seria capaz de exprimir nada
sobre Deus. A interpretação desta Palavra não pode
remeter-nos apenas de uma interpretação para outra, sem
nunca nos fazer chegar a uma afirmação absolutamente
verdadeira; caso contrário, não haveria revelação de Deus,
mas só a expressão de noções humanas sobre Ele e sobre
aquilo que presumivelmente Ele pensa de nós.
85.
Bem sei que, aos olhos de muitos dos que actualmente se
entregam à pesquisa filosófica, podem parecer árduas estas
exigências postas pela palavra de Deus à filosofia. Por isso
mesmo, retomando aquilo que, já há algumas gerações, os
Sumos Pontífices não cessam de ensinar e que o próprio
Concílio Vaticano II confirmou, quero exprimir vigorosamente
a convicção de que o homem é capaz de alcançar uma visão
unitária e orgânica do saber. Esta é uma das tarefas que o
pensamento cristão deverá assumir durante o próximo milénio
da era cristã. A subdivisão do saber, enquanto comporta uma
visão parcial da verdade com a consequente fragmentação do
seu sentido, impede a unidade interior do homem de hoje.
Como poderia a Igreja deixar de preocupar-se? Os Pastores
recebem esta função sapiencial directamente do Evangelho, e
não podem eximir-se do dever de concretizá-la.
Considero que todos os que actualmente desejam responder,
como filósofos, às exigências que a palavra de Deus põe ao
pensamento humano, deveriam elaborar o seu raciocínio sobre
a base destes postulados, numa coerente continuidade com
aquela grande tradição que, partindo dos antigos, passa
pelos Padres da Igreja e os mestres da escolástica até
chegar a englobar as conquistas fundamentais do pensamento
moderno e contemporâneo. Se conseguir recorrer a esta
tradição e inspirar-se nela, o filósofo não deixará de se
mostrar fiel à exigência de autonomia do pensamento
filosófico.
Neste
sentido, é muito importante que, no contexto actual, alguns
filósofos se façam promotores da descoberta do papel
determinante que tem a tradição para uma forma correcta de
conhecimento. De facto, o recurso à tradição não é uma mera
lembrança do passado; mas constitui sobretudo o
reconhecimento dum património cultural que pertence a toda a
humanidade. Poder-se-ia mesmo dizer que somos nós que
pertencemos à tradição, e por isso não podemos dispor dela a
nosso bel-prazer. É precisamente este enraizamento na
tradição que hoje nos permite poder exprimir um pensamento
original, novo e aberto para o futuro. Esta observação é
ainda mais pertinente para a teologia, não só porque ela
possui a Tradição viva da Igreja como fonte originária, 104 mas
também porque ela, em virtude disso mesmo, deve ser capaz de
recuperar quer a profunda tradição teológica que marcou as
épocas precedentes, quer a tradição perene daquela filosofia
que, pela sua real sabedoria, conseguiu superar as
fronteiras do espaço e do tempo.
86. A
insistência sobre a necessidade duma estreita relação de
continuidade entre a reflexão filosófica actual e a reflexão
elaborada na tradição cristã visa prevenir do perigo que se
esconde em algumas correntes de pensamento, hoje
particularmente difusas. Embora brevemente, considero
oportuno deter-me sobre elas, para pôr em relevo os seus
erros e consequentes riscos para a actividade filosófica.
A
primeira aparece sob o nome de ecletismo,
termo com o qual se designa o comportamento de quem, na
pesquisa, na doutrina e na argumentação, mesmo teológica,
costuma assumir ideias tomadas isoladamente de distintas
filosofias, sem se preocupar com a sua coerência e conexão
sistemática, nem com o seu contexto histórico. Deste modo, a
pessoa fica impossibilitada de discernir entre a parte de
verdade dum pensamento e aquilo que nele pode ser errado ou
inadequado. Também é possível individuar uma forma extrema
de ecletismo no abuso retórico dos termos filosóficos, às
vezes praticado por alguns teólogos. Este género de
instrumentalização não favorece a busca da verdade, nem
educa a razão — tanto teológica, como filosófica — a
argumentar de forma séria e científica. O estudo rigoroso e
profundo das doutrinas filosóficas, da linguagem que lhes é
peculiar, e do contexto onde surgiram, ajuda a superar os
riscos do ecletismo e permite uma adequada integração
daquelas na argumentação teológica.
87. O
ecletismo é um erro de método, mas poderia também ocultar em
si as teses próprias dohistoricismo. Para compreender
correctamente uma doutrina do passado, é necessário que
esteja inserida no seu contexto histórico e cultural.
Diversamente, o historicismo toma como sua tese fundamental
estabelecer a verdade duma filosofia com base na sua
adequação a um determinado período e função histórica. Deste
modo nega-se, pelo menos implicitamente, a validade perene
da verdade. O que era verdade numa época, afirma o
historicista, pode já não sê-lo noutra. Em resumo, a
história do pensamento, para ele, reduz-se a uma espécie de
achado arqueológico, a que recorre a fim de pôr em evidência
posições do passado, em grande parte já superadas e sem
significado para o tempo presente. Ora, apesar de a
formulação estar de certo modo ligada ao tempo e à cultura,
deve-se considerar que a verdade ou o erro nela expressos
podem ser, não obstante a distância espácio-temporal,
reconhecidos e avaliados como tais.
Na
reflexão teológica, o historicismo tende a maior parte das
vezes a apresentar-se sob uma forma de « modernismo ». Com a
justa preocupação de tornar o discurso teológico actual e
assimilável para o homem contemporâneo, faz-se apenas uso
das asserções e termos filosóficos mais recentes,
descuidando exigências críticas que, à luz da tradição,
dever-se-iam eventualmente colocar. Esta forma de
modernismo, pelo simples facto de trocar a actualidade pela
verdade, revela-se incapaz de satisfazer as exigências de
verdade a que a teologia é chamada a dar resposta.
88.
Outro perigo a ser considerado é o cientificismo.
Esta concepção filosófica recusa-se a admitir, como válidas,
formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias
das ciências positivas, relegando para o âmbito da pura
imaginação tanto o conhecimento religioso e teológico, como
o saber ético e estético. No passado, a mesma ideia aparecia
expressa no positivismo e no neopositivismo, que
consideravam destituídas de sentido as afirmações de
carácter metafísico. A crítica epistemológica desacreditou
esta posição; mas, vemo-las agora renascer sob as novas
vestes do cientificismo. Na sua perspectiva, os valores são
reduzidos a simples produtos da emotividade, e a noção de
ser é posta de lado para dar lugar ao facto puro e simples.
A ciência, prepara-se assim para dominar todos os aspectos
da existência humana, através do progresso tecnológico. Os
sucessos inegáveis no âmbito da pesquisa científica e da
tecnologia contemporânea contribuíram para a difusão da
mentalidade cientificista, que parece não conhecer
fronteiras, quando vemos como penetrou nas diversas culturas
e as mudanças radicais que aí provocou.
Infelizmente, deve-se constatar que o cientificismo
considera tudo o que se refere à questão do sentido da vida
como fazendo parte do domínio do irracional ou da fantasia.
Ainda mais decepcionante é a perspectiva apresentada por
esta corrente de pensamento a respeito dos outros grandes
problemas da filosofia que, quando não passam simplesmente
ignorados, são analisados com base em analogias
superficiais, destituídas de fundamentação racional. Isto
leva ao empobrecimento da reflexão humana, subtraindo-lhe
aqueles problemas fundamentais que o animal
rationale se
tem colocado constantemente, desde o início da sua
existência sobre a terra. Na mesma linha, ao pôr de lado a
crítica que nasce da avaliação ética, a mentalidade
cientificista conseguiu fazer com que muitos aceitassem a
ideia de que aquilo que se pode realizar tecnicamente,
torna-se por isso mesmo também moralmente admissível.
89.
Portador de perigos não menores é o pragmatismo,
atitude mental própria de quem, ao fazer as suas opções,
exclui o recurso a reflexões abstractas ou a avaliações
fundadas sobre princípios éticos. As consequências práticas,
que derivam desta linha de pensamento, são notáveis. De modo
particular, tem vindo a ganhar terreno uma concepção da
democracia que não contempla o referimento a fundamentos de
ordem axiológica e, por isso mesmo, imutáveis: a
admissibilidade, ou não, de determinado comportamento é
decidida com base no voto da maioria parlamentar. 105 A
consequência de semelhante posição é clara: as grandes
decisões morais do homem ficam efectivamente subordinadas às
deliberações que os órgãos institucionais vão assumindo
pouco a pouco. Mais, a própria antropologia fica fortemente
condicionada com a proposta duma visão unidimensional do ser
humano, da qual se excluem os grandes dilemas éticos e as
análises existenciais sobre o sentido do sofrimento e do
sacrifício, da vida e da morte.
90. As
teses examinadas até aqui conduzem, por sua vez, a uma
concepção mais geral, que parece constituir, hoje, o
horizonte comum de muitas filosofias que não querem saber do
sentido do ser. Estou a referir-me à leitura niilista, que é
a rejeição de qualquer fundamento e simultaneamente a
negação de toda a verdade objectiva. O niilismo,
antes mesmo de estar em contraste com as exigências e os
conteúdos próprios da palavra de Deus, é negação da
humanidade do homem e também da sua identidade. De facto, é
preciso ter em conta que o olvido do ser implica
inevitavelmente a perda de contacto com a verdade objectiva
e, consequentemente, com o fundamento sobre o qual se apoia
a dignidade do homem. Deste modo, abre-se espaço à
possibilidade de apagar, da face do homem, os traços que
revelam a sua semelhança com Deus, conduzindo-o
progressivamente a uma destrutiva ambição de poder ou ao
desespero da solidão. Uma vez que se privou o homem da
verdade, é pura ilusão pretender torná-lo livre. Verdade e
liberdade, com efeito, ou caminham juntas, ou juntas
miseravelmente perecem. 106
91. Ao
comentar as correntes de pensamento acima lembradas, não foi
minha intenção apresentar um quadro completo da situação
actual da filosofia: aliás, esta dificilmente poderia ser
integrada numa visão unitária. Faço questão de assinalar que
a herança do saber e da sabedoria se enriqueceu
efectivamente em diversos campos. Basta citar a lógica, a
filosofia da linguagem, a epistemologia, a filosofia da
natureza, a antropologia, a análise profunda das vias
afectivas do conhecimento, a perspectiva existencial
aplicada à análise da liberdade. Por outro lado, a afirmação
do princípio de imanência, que está no âmago da pretensão
racionalista, suscitou, a partir do século passado, reacções
que levaram a pôr radicalmente em questão postulados
considerados indiscutíveis. Nasceram assim correntes
irracionalistas, ao mesmo tempo que a crítica punha em
evidência a inutilidade da exigência de auto-fundamentação
absoluta da razão.
A
nossa época foi definida por certos pensadores como a época
da « pós-modernidade ». Este termo, não raramente usado em
contextos muito distanciados entre si, designa a aparição de
um conjunto de factores novos, que, pela sua extensão e
eficácia, se revelaram capazes de determinar mudanças
significativas e duradouras. Assim, o termo foi
primeiramente usado no campo de fenómenos de ordem estética,
social, tecnológica. Depois, estendeu-se ao âmbito
filosófico, permanecendo, porém, marcado por certa
ambiguidade, quer porque a avaliação do que se define como «
pós-moderno » é umas vezes positivo e outras negativo, quer
porque não existe consenso sobre o delicado problema da
delimitação das várias épocas históricas. Uma coisa,
todavia, é certa: as correntes de pensamento que fazem
referência à pós-modernidade merecem adequada atenção.
Segundo algumas delas, de facto, o tempo das certezas teria
irremediavelmente passado, o homem deveria finalmente
aprender a viver num horizonte de ausência total de sentido,
sob o signo do provisório e do efémero. Muitos autores, na
sua crítica demolidora de toda a certeza e ignorando as
devidas distinções, contestam inclusivamente as certezas da
fé.
De
algum modo, este niilismo encontra confirmação na terrível
experiência do mal que caracterizou a nossa época. O
optimismo racionalista que via na história o avanço
vitorioso da razão, fonte de felicidade e de liberdade, não
pôde resistir face à dramaticidade de tal experiência, a
ponto de uma das maiores ameaças, neste final de século, ser
a tentação do desespero.
Verdade é que uma certa mentalidade positivista continua a
defender a ilusão de que, graças às conquistas científicas e
técnicas, o homem, como se fosse um demiurgo, poderá chegar
por si mesmo a garantir o domínio total do seu destino.
2.
Tarefas actuais da teologia
92.
Enquanto compreensão da Revelação, a teologia, nas
sucessivas épocas históricas, sempre sentiu como próprio
dever escutar as solicitações das várias culturas, para
permeá-las depois, através duma coerente conceptualização,
com o conteúdo da fé. Também hoje lhe compete uma dupla
tarefa. Por um lado, deve cumprir a missão que o Concílio
Vaticano II lhe confiou: renovar as suas metodologias, tendo
em vista um serviço mais eficaz à evangelização. Nesta
perspectiva, como não pensar às palavras pronunciadas pelo
Sumo Pontífice João XXIII, na abertura do Concílio? Dizia
ele: « Correspondendo à viva expectativa de quantos amam
sinceramente a religião cristã, católica e apostólica, é
necessário que esta doutrina seja conhecida mais ampla e
profundamente e que nela sejam instruídas e formadas mais
plenamente as consciências; é preciso que esta doutrina
certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja
aprofundada e apresentada segundo as exigências do nosso
tempo ». 107
Mas,
por outro lado, a teologia deve manter o olhar fixo sobre a
verdade última que lhe foi confiada por meio da Revelação,
não se contentando nem se detendo em etapas intermédias. O
teólogo recorde-se de que o seu trabalho corresponde « ao
dinamismo interior próprio da fé » e que o objecto
específico da sua indagação é « a Verdade, o Deus vivo e o
seu desígnio de salvação revelado em Jesus Cristo ». 108 Esta
tarefa, que diz respeito em primeiro lugar à teologia,
interpela também a filosofia. De facto, a quantidade imensa
de problemas, que hoje aparece, requer um trabalho comum,
embora desenvolvido com metodologias diversas, para que a
verdade possa novamente ser conhecida e anunciada. A
Verdade, que é Cristo, impõe-se como autoridade universal
que rege, estimula e faz crescer (cf. Ef 4,
15) tanto a teologia como a filosofia.
O
facto de acreditar na possibilidade de se conhecer uma
verdade universalmente válida não é de forma alguma fonte de
intolerância; pelo contrário, é condição necessária para um
diálogo sincero e autêntico entre as pessoas. Só com esta
condição será possível superar as divisões e percorrer
juntos o caminho que conduz à verdade total, seguindo por
sendas que só Espírito do Senhor ressuscitado conhece. 109 O
modo como se configura hoje concretamente a exigência de
unidade, tendo em vista as tarefas actuais da teologia, é o
que desejo agora indicar.
93. O
objectivo fundamental, que a teologia persegue, é apresentar
a compreensão da Revelação e o conteúdo da fé. Assim, o
verdadeiro centro da sua reflexão há-de ser a contemplação
do próprio mistério de Deus Uno e Trino. E a este chega-se
reflectindo sobre o mistério da encarnação do Filho de Deus:
sobre o facto de Ele Se fazer homem e, depois, caminhar até
à paixão e à morte, mistério este que desembocará na sua
gloriosa ressurreição e ascensão à direita do Pai, donde
enviará o Espírito de verdade para constituir e animar a sua
Igreja. Neste horizonte, a obrigação primeira da teologia é
a compreensão da kenosi de
Deus, mistério verdadeiramente grande para a mente humana,
porque lhe parece insustentável que o sofrimento e a morte
possam exprimir o amor que se dá sem pedir nada em troca.
Nesta perspectiva, impõe-se como exigência fundamental e
urgente uma análise atenta dos textos: os textos bíblicos
primeiro, e depois os que exprimem a Tradição viva da
Igreja. A este respeito, surgem hoje alguns problemas, novos
só em parte, cuja solução coerente não poderá ser encontrada
sem o contributo da filosofia.
94. Um
primeiro aspecto problemático refere-se à relação entre o
significado e a verdade. Como qualquer outro texto, também
as fontes que o teólogo interpreta transmitem, antes de
mais, um significado, que tem de ser individuado e exposto.
Ora, este significado apresenta-se como a verdade acerca de
Deus, que é comunicada pelo próprio Deus por meio do texto
sagrado. Assim, a linguagem de Deus toma corpo na linguagem
humana, comunicando a verdade sobre Ele mesmo com aquela «
condescendência » admirável que reflecte a lógica da
Encarnação. 110 Por
isso, ao interpretar as fontes da Revelação, é necessário
que o teólogo se interrogue sobre qual seja a verdade
profunda e genuína que os textos querem comunicar, embora
dentro dos limites da linguagem.
Quanto
aos textos bíblicos, e em particular os Evangelhos, a sua
verdade não se reduz seguramente à narração de simples
acontecimentos históricos ou à revelação de factos neutros,
como pretendia o positivismo historicista. 111 Pelo
contrário, esses textos expõem acontecimentos, cuja verdade
está para além da mera ocorrência histórica: está no seu
significado para e dentro
da história
da salvação. Esta verdade adquire a sua plena explicitação
na leitura perene que a Igreja faz dos referidos textos ao
longo dos séculos, mantendo inalterado o seu significado
originário. Portanto, é urgente que se interroguem,
filosoficamente também, sobre a relação que há entre o facto
e o seu significado; relação essa que constitui o sentido
específico da história.
95. A
palavra de Deus não se destina apenas a um povo ou só a uma
época. De igual modo, também os enunciados dogmáticos
formulam uma verdade permanente e definitiva, ainda que às
vezes se possa notar neles a cultura do período em que foram
definidos. Surge, assim, a pergunta sobre como seja possível
conciliar o carácter absoluto e universal da verdade com o
inevitável condicionamento histórico e cultural das fórmulas
que a exprimem. Como disse anteriormente, as teses do
historicismo não são defendíveis. Pelo contrário, a
aplicação duma hermenêutica aberta à questão metafísica é
capaz de mostrar como se passa das circunstâncias históricas
e contingentes, onde maturaram os textos, à verdade por eles
expressa que está para além desses condicionalismos.
Com a
sua linguagem histórica e limitada, o homem pode exprimir
verdades que transcendem o fenómeno linguístico. De facto, a
verdade nunca pode estar limitada a um tempo, nem a uma
cultura; é conhecida na história, mas supera a própria
história.
96.
Esta consideração permite vislumbrar a solução de outro
problema: o da perene validade dos conceitos usados nas
definições conciliares. Já o meu venerado Predecessor Pio
XII enfrentara a questão, na carta encíclica Humani
generis. 112
A
reflexão sobre este assunto não é fácil, porque tem-se de
atender cuidadosamente ao sentido que as palavras adquirem
nas diversas culturas e nas diferentes épocas. Entretanto, a
história do pensamento mostra que certos conceitos básicos
mantêm, através da evolução e da variedade das culturas, o
seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a
verdade das proposições que os exprimem. 113 Se
assim não fosse, a filosofia e as ciências não poderiam
comunicar entre si, nem ser recebidas por culturas
diferentes daquelas onde foram pensadas e elaboradas. O
problema hermenêutico é real, mas tem solução. O valor
objectivo de muitos conceitos não exclui, aliás, que o seu
significado frequentemente seja imperfeito. A reflexão
filosófica poderia ser de grande ajuda neste campo. Possa
ela prestar o seu contributo particular no aprofundamento da
relação entre linguagem conceptual e verdade, e na proposta
de caminhos adequados para uma sua correcta compreensão.
97. Se
uma tarefa importante da teologia é a interpretação das
fontes, mais delicado e exigente ainda é o trabalho
seguinte: a compreensão
da verdade revelada, ou seja, a elaboração do intellectus
fidei. Como já aludi, o intellectus
fidei requer
o contributo duma filosofia do ser que, antes de mais,
permita à teologia
dogmática realizar
adequadamente as suas funções. O pragmatismo dogmático dos
inícios deste século, segundo o qual as verdades da fé nada
mais seriam do que regras de comportamento, foi já refutado
e rejeitado; 114 apesar
disso, persiste sempre a tentação de compreender estas
verdades de forma puramente funcional. Neste caso,
cair-se-ia num esquema inadequado, redutivo e desprovido da
necessária incisividade especulativa. Por exemplo, uma
cristologia que partisse unilateralmente « de baixo », como
hoje se costuma dizer, ou uma eclesiologia elaborada
unicamente a partir do modelo das sociedades civis
dificilmente poderiam evitar o perigo de tal reducionismo.
Se o intellectus
fidei quer
integrar toda a riqueza da tradição teológica, tem de
recorrer à filosofia do ser. Esta deverá ser capaz de propor
o problema do ser segundo as exigências e as contribuições
de toda a tradição filosófica, incluindo a mais recente,
evitando cair em estéreis repetições de esquemas antiquados.
No quadro da tradição metafísica cristã, a filosofia do ser
é uma filosofia dinâmica que vê a realidade nas suas
estruturas ontológicas, causais e inter-relacionais. A sua
força e perenidade derivam do facto de se basear
precisamente sobre o acto do ser, o que lhe permite uma
abertura plena e global a toda a realidade, superando todo e
qualquer limite até alcançar Aquele que tudo leva à
perfeição. 115 Na
teologia, que recebe os seus princípios da Revelação como
nova fonte de conhecimento, esta perspectiva é confirmada
através da relação íntima entre fé e racionalidade
metafísica.
98.
Idênticas considerações podem ser feitas a propósito da teologia
moral. A recuperação da filosofia é urgente também para
a compreensão da fé que diz respeito ao agir dos crentes.
Diante dos desafios que se levantam actualmente no campo
social, económico, político e científico, a consciência
ética do homem desorientou-se. Na carta encíclica Veritatis
splendor, pus em evidência que muitos problemas do mundo
contemporâneo derivam de uma « crise em torno da verdade.
Perdida a ideia duma verdade universal sobre o bem,
cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente
a concepção de consciência: esta deixa de ser considerada na
sua realidade original, ou seja, como um acto da
inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento
universal do bem a uma determinada situação e exprimir assim
um juízo sobre a conduta justa a ter aqui e agora; tende-se
a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de
estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mal, e de
agir em consequência. Esta visão identifica-se com uma ética
individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua
verdade, diferente da verdade dos outros ». 116
Ao
longo de toda a encíclica agora citada, sublinhei claramente
o papel fundamental que compete à verdade no campo da moral.
Ora esta verdade, na maior parte dos problemas éticos mais
urgentes, requer, da teologia moral, uma cuidadosa reflexão
que saiba pôr em evidência as suas raízes na palavra de
Deus. Para poder desempenhar esta sua missão, a teologia
moral deve recorrer a uma ética filosófica que tenha em
vista a verdade do bem, isto é, uma ética que não seja
subjectivista nem utilitarista. Tal ética implica e
pressupõe uma antropologia filosófica e uma metafísica do
bem. A teologia moral, valendo-se desta visão unitária que
está necessariamente ligada à santidade cristã e à prática
das virtudes humanas e sobrenaturais, será capaz de
enfrentar os vários problemas que lhe dizem respeito — tais
como a paz, a justiça social, a família, a defesa da vida e
do ambiente natural — de forma mais adequada e eficaz.
99. Na
Igreja, o trabalho teológico está, primariamente, ao serviço
do anúncio da fé e da catequese.117 O
anúncio, ou querigma, chama à conversão, propondo a verdade
de Cristo que tem o seu ponto culminante no Mistério Pascal:
na verdade, só em Cristo é possível conhecer a plenitude da
verdade que salva (cf. Act 4,
12; 1 Tim 2,
4-6).
Neste
contexto, é fácil compreender a razão por que, além da
teologia, assuma também grande relevo a referência à catequese:
é que esta possui implicações filosóficas que têm de ser
aprofundadas à luz da fé. A doutrina ensinada na catequese
pretende formar a pessoa. Por isso a catequese, que é também
comunicação linguística, deve apresentar a doutrina da
Igreja na sua integridade, 118 mostrando
a ligação que ela tem com a vida dos crentes. 119 Realiza-se,
assim, uma singular união entre doutrina e vida, que é
impossível conseguir de outro modo. De facto, aquilo que se
comunica na catequese não é um corpo de verdades
conceptuais, mas o mistério do Deus vivo.120
A
reflexão filosófica muito pode contribuir para esclarecer a
relação entre verdade e vida, entre acontecimento e verdade
doutrinal, e sobretudo a relação entre verdade transcendente
e linguagem humanamente inteligível. 121 A
reciprocidade que se cria entre as disciplinas teológicas e
os resultados alcançados pelas diversas correntes
filosóficas, pode traduzir-se numa real fecundidade para a
comunicação da fé e para uma sua compreensão mais profunda.
CONCLUSÃO
100.
Passados mais de cem anos da publicação da encíclica Æterni
Patris de
Leão XIII, à qual me referi várias vezes nestas páginas,
pareceu-me necessário abordar novamente e de forma mais
sistemática o discurso sobre o tema da relação entre a fé e
a filosofia. É óbvia a importância que o pensamento
filosófico tem no progresso das culturas e na orientação dos
comportamentos pessoais e sociais. Embora isso nem sempre se
note de forma explícita, ele exerce também uma grande
influência sobre a teologia e suas diversas disciplinas. Por
estes motivos, considerei justo e necessário sublinhar o
valor que a filosofia tem para a compreensão da fé, e as
limitações em que aquela se vê, quando esquece ou rejeita as
verdades da Revelação. De facto, a Igreja continua
profundamente convencida de que fé e razão « se ajudam
mutuamente », 122 exercendo,
uma em prol da outra, a função tanto de discernimento
crítico e purificador, como de estímulo para progredir na
investigação e no aprofundamento.
101.
Se detivermos o nosso olhar sobre a história do pensamento,
sobretudo no Ocidente, é fácil constatar a riqueza que
sobreveio, para o progresso da humanidade, do encontro da
filosofia com a teologia e do intercâmbio das suas
respectivas conquistas. A teologia, que recebeu o dom duma
abertura e originalidade que lhe permite existir como
ciência da fé, fez seguramente com que a razão permanecesse
aberta diante da novidade radical que a revelação de Deus
traz consigo. E isto foi, sem dúvida alguma, uma vantagem
para a filosofia, que, assim, viu abrirem-se novos
horizontes apontando para sucessivos significados que a
razão está chamada a aprofundar.
Precisamente à luz desta constatação, tal como reafirmei o
dever que tem a teologia de recuperar a sua genuína relação
com a filosofia, da mesma forma sinto a obrigação de
sublinhar que é conveniente para o bem e o progresso do
pensamento que também a filosofia recupere a sua relação com
a teologia. Nesta, encontrará não a reflexão dum mero
indivíduo, que, embora profunda e rica, sempre traz consigo
as limitações de perspectiva próprias do pensamento de um
só, mas a riqueza duma reflexão comum. De facto, quando
indaga sobre a verdade, a teologia, por sua natureza, é
sustentada pela nota da eclesialidade 123 e
pela tradição do Povo de Deus, com sua riqueza multiforme de
conhecimentos e de culturas na unidade da fé.
102.
Com tal insistência sobre a importância e as autênticas
dimensões do pensamento filosófico, a Igreja promove a
defesa da dignidade humana e, simultaneamente, o anúncio da
mensagem evangélica. Ora, para estas tarefas, não existe,
hoje, preparação mais urgente do que esta: levar os homens à
descoberta da sua capacidade de conhecer a verdade 124 e
do seu anseio pelo sentido último e definitivo da
existência. À luz destas exigências profundas, inscritas por
Deus na natureza humana, aparece mais claro também o
significado humano e humanizante da palavra de Deus. Graças
à mediação de uma filosofia que se tornou também verdadeira
sabedoria, o homem contemporâneo chegará a reconhecer que
será tanto mais homem quanto mais se abrir a Cristo,
acreditando no Evangelho.
103.
Além disso, a filosofia é como que o espelho onde se
reflecte a cultura dos povos. Uma filosofia que se
desenvolve de harmonia com a fé aceitando o estímulo das
exigências teológicas, faz parte daquela « evangelização da
cultura » que Paulo VI propôs como um dos objectivos
fundamentais da evangelização. 125 Pensando
na nova
evangelização, cuja
urgência não me canso de recordar, faço apelo aos filósofos
para que saibam aprofundar aquelas dimensões de verdade, bem
e beleza, a que dá acesso a palavra de Deus. Isto torna-se
ainda mais urgente, ao considerar os desafios que o novo
milénio parece trazer consigo: eles tocam de modo particular
as regiões e as culturas de antiga tradição cristã. Este
cuidado deve considerar-se também um contributo fundamental
e original para o avanço da nova evangelização.
104. O
pensamento filosófico é frequentemente o único terreno comum
de entendimento e diálogo com quem não partilha a nossa fé.
O movimento filosófico contemporâneo exige o empenhamento
solícito e competente de filósofos crentes que sejam capazes
de individuar as expectativas, possibilidades e
problemáticas deste momento histórico. Discorrendo à luz da
razão e segundo as suas regras, o filósofo cristão, sempre
guiado naturalmente pela leitura superior que lhe vem da
palavra de Deus, pode criar uma reflexão que seja
compreensível e sensata mesmo para quem ainda não possua a
verdade plena que a revelação divina manifesta. Este terreno
comum de entendimento e diálogo é ainda mais importante
hoje, se se pensa que os problemas mais urgentes da
humanidade — como, por exemplo, o problema ecológico, o
problema da paz ou da convivência das raças e das culturas —
podem ter solução à luz duma colaboração clara e honesta dos
cristãos com os fiéis doutras religiões e com todos os que,
mesmo não aderindo a qualquer crença religiosa, têm a peito
a renovação da humanidade. Afirmou-o o Concílio Vaticano II:
« Por nossa parte, o desejo de um tal diálogo, guiado apenas
pelo amor pela verdade e com a necessária prudência, não
exclui ninguém: nem aqueles que cultivam os altos valores do
espírito humano, sem ainda conhecerem o seu Autor, nem
aqueles que se opõem à Igreja e, de várias maneiras, a
perseguem ». 126 Uma
filosofia, na qual já resplandeça algo da verdade de Cristo,
única resposta definitiva aos problemas do homem, 127
será um apoio eficaz para aquela ética verdadeira e
simultaneamente universal de que, hoje, a humanidade tem
necessidade.
105.
Não posso concluir esta carta encíclica sem dirigir um
último apelo, em primeiro lugar aosteólogos, para que
prestem particular atenção às implicações filosóficas da
palavra de Deus e realizem uma reflexão onde sobressaia a
densidade especulativa e prática da ciência teológica.
Desejo agradecer-lhes o seu serviço eclesial. A estrita
conexão entre a sabedoria teológica e o saber filosófico é
uma das riquezas mais originais da tradição cristã no
aprofundamento da verdade revelada. Por isso, exorto-os a
recuperarem e a porem em evidência o melhor possível a
dimensão metafísica da verdade, para desse modo entrarem num
diálogo crítico e exigente quer com o pensamento filosófico
contemporâneo, quer com toda a tradição filosófica, esteja
esta em sintonia ou contradição com a palavra de Deus.
Tenham sempre presente a indicação dum grande mestre do
pensamento e da espiritualidade, S. Boaventura, que, ao
introduzir o leitor na sua obra Itinerarium
mentis in Deum, convidava-o a ter consciência de que « a
leitura não é suficiente sem a compunção, o conhecimento sem
a devoção, a investigação sem o arrebatamento do enlevo, a
prudência sem a capacidade de abandonar-se à alegria, a
actividade separada da religiosidade, o saber separado da
caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem o
suporte da graça divina, a reflexão sem a sabedoria
inspirada por Deus ». 128
Dirijo
o meu apelo também a quantos têm a responsabilidade
da formação sacerdotal, tanto académica como pastoral,
para que cuidem, com particular atenção, da preparação
filosófica daquele que deverá anunciar o Evangelho ao homem
de hoje, e mais ainda se se vai dedicar à investigação e ao
ensino da teologia. Procurem organizar o seu trabalho à luz
das prescrições do Concílio Vaticano II 129 e
sucessivas determinações, que mostram a tarefa indeclinável
e urgente, que cabe a todos nós, de contribuir para uma
genuína e profunda comunicação das verdades da fé. Não se
esqueça a grave responsabilidade de uma preparação prévia e
condigna do corpo docente, destinado ao ensino da filosofia
nos Seminários e nas Faculdades Eclesiásticas. 130 É
necessário que uma tal docência possua a conveniente
preparação científica, proponha de maneira sistemática o
grande património da tradição cristã, e seja efectuada com o
devido discernimento face às exigências actuais da Igreja e
do mundo.
106. O
meu apelo dirige-se ainda aos filósofos e
a quantos
ensinam a filosofia, para que, na esteira duma tradição
filosófica perenemente válida, tenham a coragem de recuperar
as dimensões de autêntica sabedoria e de verdade, inclusive
metafísica, do pensamento filosófico. Deixem-se interpelar
pelas exigências que nascem da palavra de Deus, e tenham a
força de elaborar o seu discurso racional e argumentativo de
resposta a tal interpelação. Vivam em permanente tensão para
a verdade e atentos ao bem que existe em tudo o que é
verdadeiro. Poderão, assim, formular aquela ética genuína de
que a humanidade tem urgente necessidade, sobretudo nestes
anos. A Igreja acompanha com atenção e simpatia as suas
investigações; podem, pois, estar seguros do respeito que
ela nutre pela justa autonomia da sua ciência. De modo
particular, quero encorajar os crentes empenhados no campo
da filosofia para que iluminem os diversos âmbitos da
actividade humana, graças ao exercício de uma razão que se
torna mais segura e perspicaz com o apoio que recebe da fé.
Não
posso, enfim, deixar de dirigir uma palavra também aos cientistas,
que nos proporcionam, com as suas pesquisas, um conhecimento
sempre maior do universo inteiro e da variedade
extraordinariamente rica dos seus componentes, animados e
inanimados, com suas complexas estruturas de átomos e
moléculas. O caminho por eles realizado atingiu,
especialmente neste século, metas que não cessam de nos
maravilhar. Ao exprimir a minha admiração e o meu
encorajamento a estes valorosos pioneiros da pesquisa
científica, a quem a humanidade muito deve do seu progresso
actual, sinto o dever de exortá-los a prosseguir nos seus
esforços, permanecendo sempre naquele horizonte sapiencial onde
aos resultados científicos e tecnológicos se unem os valores
filosóficos e éticos, que são manifestação característica e
imprescindível da pessoa humana. O cientista está bem
cônscio de que « a busca da verdade, mesmo quando se refere
a uma realidade limitada do mundo ou do homem, jamais
termina; remete sempre para alguma coisa que está acima do
objecto imediato dos estudos, para os interrogativos que
abrem o acesso ao Mistério ». 131
107. A todos peço
para se debruçarem profundamente sobre o homem, que Cristo
salvou no mistério do seu amor, e sobre a sua busca
constante de verdade e de sentido. Iludindo-o, vários
sistemas filosóficos convenceram-no de que ele é senhor
absoluto de si mesmo, que pode decidir autonomamente sobre o
seu destino e o seu futuro, confiando apenas em si próprio e
nas suas forças. Ora, esta nunca poderá ser a grandeza do
homem. Para a sua realização, será determinante apenas a
opção de viver na verdade, construindo a própria casa à
sombra da Sabedoria e nela habitando. Só neste horizonte da
verdade poderá compreender, com toda a clareza, a sua
liberdade e o seu chamamento ao amor e ao conhecimento de
Deus como suprema realização de si mesmo.
108.
Por último, o meu pensamento dirige-se para Aquela que a
oração da Igreja invoca como Sede
da Sabedoria. A sua vida é uma verdadeira parábola,
capaz de iluminar a reflexão que desenvolvi. De facto,
pode-se entrever uma profunda analogia entre a vocação da
bem-aventurada Virgem Maria e a vocação da filosofia
genuína. Como a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua
humanidade e feminilidade para que o Verbo de Deus pudesse
encarnar e fazer-Se um de nós, também a filosofia é chamada
a dar o seu contributo racional e crítico para que a
teologia, enquanto compreensão da fé, seja fecunda e eficaz.
E como Maria, ao prestar o seu consentimento ao anúncio de
Gabriel, nada perdeu da sua verdadeira humanidade e
liberdade, assim também o pensamento filosófico, quando
acolhe a interpelação que recebe da verdade do Evangelho,
nada perde da sua autonomia, antes vê toda a sua indagação
elevada à mais alta realização. Os santos monges da
antiguidade cristã tinham compreendido bem esta verdade,
quando designavam Maria como « a mesa intelectual da fé ». 132 N'Ela,
viam a imagem coerente da verdadeira filosofia, e estavam
convencidos de que deviam philosophari
in Maria.
Que a
Sede da Sabedoria seja o porto seguro para quantos consagram
a sua vida à procura da sabedoria! O caminho para a
sabedoria, fim último e autêntico de todo o verdadeiro
saber, possa ver-se livre de qualquer obstáculo por
intercessão d'Aquela que, depois de gerar a Verdade e tê-La
conservado no seu coração, comunicou-A para sempre à
humanidade inteira.
Dado
em Roma, junto de S. Pedro, no dia 14 de Setembro — Festa da
Exaltação da Santa Cruz — de 1998, vigésimo ano de
Pontificado.
IOANNES PAULUS PP. II
www.obradoespiritosanto.com
Notas:
1 Na
minha primeira encíclica, a Redemptor
hominis,
já tinha escrito: « Tornámo-nos participantes de tal missão
de Cristo profeta, e, em virtude desta mesma missão e
juntamente com Ele, servimos a verdade divina na Igreja. A
responsabilidade por esta verdade implica também amá-la e
procurar obter a sua mais exacta compreensão, a fim de a
tornarmos mais próxima de nós mesmos e dos outros, com toda
a sua força salvífica, com o seu esplendor, com a sua
profundidade e simultaneamente a sua simplicidade » [N. 19: AAS 71
(1979), 306].
2 Cf.
Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium
et spes,
16.
3 Const.
dogm. sobre a Igreja Lumen
gentium,
25.
4 N.
4: AAS 85
(1993), 1136.
5 Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 2.
6 Cf.
Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, III: DS 3008.
7 Ibid.,
IV: DS 3015;
citado também em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a
Igreja no mundo contemporâneoGaudium et spes, 59.
8 Const.
dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 2.
9 João
Paulo II, Carta ap. Tertio
millennio adveniente (10
de Novembro de 1994), 10: AAS 87
(1995), 11.
10 N.
4.
11 N.
8.
12 N.
22.
13 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 4.
14 Ibid.,
5.
15 O
Concílio Vaticano I, ao qual se refere a sentença
anteriormente citada, ensina que a obediência da fé exige o
empenhamento da inteligência e da vontade: « Dado que o
homem depende totalmente de Deus, enquanto seu Criador e
Senhor, e a razão criada está submetida completamente à
verdade incriada, somos obrigados, quando Deus Se revela, a
prestar-Lhe, mediante a fé, a plena submissão da nossa
inteligência e da nossa vontade » [Const. dogm. sobre a fé
católica Dei
Filius, III: DS 3008].
16 Sequência,
na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.
17 Pensées (ed.
L. Brunschvicg), 789.
18 Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium
et spes, 22.
19 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 2.
20 Proémio
e nn. 1 e 15: PL 158,
223-224.226.235.
21 De
vera religione, XXXIX, 72: CCL 32,
234.
22 «
Ut te semper desiderando quærerent et inveniendo quiescerent
»: Missale
Romanum.
23 Aristóteles, Metafísica,
I, 1.
24 Confessiones,
X, 23, 33: CCL 27,173.
25 N.
34: AAS 85
(1993), 1161.
26 Cf.
João Paulo II, Carta ap. Salvifici
doloris (11
de Fevereiro de 1984), 9: AAS 76
(1984), 209-210.
27 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a relação da Igreja com as
religiões não-cristãs Nostra
ætate, 2.
28 Desenvolvo,
há muito tempo, esta argumentação, tendo-a expresso em
diversas ocasiões: « "Quem é o homem, e para que serve? E
que bem ou que mal pode ele fazer?" (Sir 18,
8) (...) Estas perguntas estão no coração de cada homem,
como bem demonstra o génio poético de todos os tempos e de
todos os povos, que, quase como profecia da humanidade,
repropõe continuamente a séria
pergunta que
torna o homem verdadeiramente tal. Exprimem a urgência de
encontrar um porquê da existência, de todos os seus
instantes, tanto das suas etapas salientes e decisivas como
dos seus momentos mais comuns. Em tais perguntas, é
testemunhada a razão profunda da existência humana, pois
nelas a inteligência e a vontade do homem são solicitadas a
procurar livremente a solução capaz de oferecer um sentido
pleno à vida. Estes interrogativos, portanto, constituem a
expressão mais elevada da natureza do homem; por
conseguinte, a resposta a eles mede a profundidade do seu
empenho na própria existência. Em particular, quando o
porquê das coisas é
procurado a fundo em busca da resposta última e mais
exauriente, então a razão humana atinge o seu vértice e
abre-se à religiosidade. De facto, a religiosidade
representa a expressão mais elevada da pessoa humana, porque
é o ápice da sua natureza racional. Brota da profunda
aspiração do homem à verdade, e está na base da busca livre
e pessoal que ele faz do divino » [Alocução
da Audiência Geral de quarta-feira,
19 de Outubro de 1983, 1-2: L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa, de 23 de Outubro de 1983), 12].
29 «
[Galileu] declarou explicitamente que as duas verdades, de
fé e de ciência, não podem nunca contradizer-se, "procedendo
igualmente do Verbo divino a Escritura santa e a natureza, a
primeira como ditada pelo Espírito Santo, a segunda como
executora fidelíssima das ordens de Deus", segundo ele
escreveu na sua carta ao Padre Benedetto Castelli, a 21 de
Dezembro de 1613. O Concílio Vaticano II não se exprime
diferentemente; retoma mesmo expressões semelhantes, quando
ensina: "A investigação metódica em todos os campos do
saber, quando levada a cabo (...) segundo as normas morais,
nunca será realmente
oposta
à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no
mesmo Deus" (Gaudium
et spes,
36). Galileu manifesta, na sua investigação científica, a
presença do Criador que o estimula, que Se antecipa às suas
intuições e as ajuda, operando no mais profundo do seu
espírito » [João Paulo II, Discurso à Pontifícia Academia
das Ciências, a 10 de Novembro de 1979: L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa, de 25 de Novembro de 1979), 6].
30 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum,
4.
31 Orígenes, Contra
Celso 3,
55: SC 136,
130.
32 Diálogo
com Trifão, 8, 1: PG 6,
492.
33 Stromata I,
18, 90, 1: SC 30,
115.
34 Cf. ibid.
I, 16, 80, 5: SC 30,
108.
35 Cf. ibid.
I, 5, 28, 1: SC 30,
65.
36 Ibid.,
VI, 7, 55, 1-2: PG 9,
277.
37 Ibid.,
I, 20, 100, 1: SC 30,
124.
38 Santo
Agostinho, Confessiones VI,
5, 7: CCL 27,
77-78.
39 Cf. ibid.
VII, 9, 13-14: CCL 27,
101-102.
40 «
Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiæ et ecclesiæ?
» [De
præscriptione hereticorum,
VII, 9: SC 46,
98].
41 Cf.
Congr. da Educação Católica, Instr. sobre o estudo dos
Padres da Igreja na formação sacerdotal (10 de Novembro de
1989), 25: AAS 82
(1990), 617-618.
42 Santo
Anselmo, Proslogion,
1: PL 158,
226.
43 Idem, Monologion,
64: PL 158,
210.
44 Cf.
S. Tomás de Aquino, Summa
contra gentiles, I, VII.
45 «
Cum enim gratia non tollat naturam, sed perficiat » [Idem, Summa
theologiæ, I, 1, 8 ad 2].
46 Cf.
João Paulo II, Discurso aos participantes no IX Congresso
Tomista Internacional (29 de Setembro de 1990):L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa de 28 de Outubro de 1990), 9.
47 Carta
ap. Lumen
Ecclesiæ (20
de Novembro de 1974), 8: AAS 66
(1974), 680.
48 «
Præterea, hæc doctrina per studium acquiritur. Sapientia
autem per infusionem habetur, unde inter septem
dona Spiritus Sancti connumeratur » [Summa
theologiæ, I, 1, 6].
49 Ibid.,
II, II, 45, 1 ad 2; cf. também II, II, 45, 2.
50 Ibid.,
I, II, 109, 1 ad 1, que cita a conhecida frase do
Ambrosiaster, In
prima Cor 12,3: PL 17,
258.
51 Leão
XIII, Carta enc. ÆTERNI
PATRIS (4
de Agosto de 1879): ASS 11
(1878-1879), 109.
52 Paulo
VI, Carta ap. Lumen
Ecclesiæ (20
de Novembro de 1974), 8: AAS 66
(1974), 683.
53 Carta
enc. Redemptor
hominis (4
de Março de 1979), 15: AAS 71
(1979), 286.
54 Cf.
Pio XII, Carta enc. Humani
generis (12
de Agosto de 1950): AAS 42
(1950), 566.
55 Cf.
Conc. Ecum. Vat. I, Primeira const. dogm. sobre a Igreja de
Cristo Pastor
TERNUS: DS 3070;
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen
gentium, 25c.
56 Cf.
Sínodo de Constantinopla, DS 403.
57 Cf.
Concílio de Toledo I, DS 205;
Concílio de Braga I, DS 459-460;
Sisto V, Bula Cœli
et terræ Creator (5
de Janeiro de 1586): Bullarium
Romanum 44
(Roma, 1747), 176-179; Urbano VIII, Inscrutabilis
iudiciorum(1 de Abril de
1631): Bullarium
Romanum 61
(Roma, 1758), 268-270.
58 Cf.
Conc. Ecum. de Viena, Decr. Fidei
catholicæ: DS 902; Conc. Ecum.
Lateranense V, Bula Apostolici
regiminis: DS 1440.
59 Cf. Theses
a Ludovico Eugenio Bautain
iussu sui Episcopi subscriptæ (8
de Setembro de 1840): DS2751-2756; Theses
a Ludovico Eugenio Bautain ex mandato S. Congr. Episcoporum
et Religiosorum subscriptæ (26
de Abril de 1844): DS 2765-2769.
60 Cf.
S. Congr. Indicis, Decr. Theses
contra traditionalismum Augustini
Bonnety (11
de Junho de 1855):DS 2811-2814.
61 Cf.
Pio IX, Breve Eximiam
tuam (15
de Junho de 1857): DS 2828-2831;
Breve Gravissimas
inter (11
de Dezembro de 1862): DS 2850-2861.
62 Cf.
S. Congr. do Santo Ofício, Decr. Errores
ontologistarum (18
de Setembro de 1861): DS 2841-2847.
63 Cf.
Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, II: DS 3004;
e cân. 2-§1: DS 3026.
64 Ibid.,
IV: DS 3015,
citado em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja
no mundo contemporâneoGaudium et spes, 59.
65 Conc.
Ecum. Vat. I, Const.
dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, IV: DS 3017.
66 Cf.
Carta enc. Pascendi
dominici gregis (8
de Setembro de 1907): ASS 40
(1907), 596-597.
67 Cf.
Pio XI, Carta enc. Divini
Redemptoris (19
de Março de 1937): AAS 29
(1937), 65-106.
68 Carta
enc. Humani
generis (12
de Agosto de 1950): AAS 42
(1950), 562-563.
69 Ibid.: o.c.,
563-564.
70 Cf.
João Paulo II, Const. ap. Pastor
Bonus (28
de Junho de 1988) arts. 48-49: AAS 80
(1988), 873; Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a
vocação eclesial do teólogo Donum
veritatis (24
de Maio de 1990), 18: AAS82
(1990), 1558.
71 Cf.
Instr. sobre alguns aspectos da « teologia da libertação » Libertatis
nuntius (6
de Agosto de 1984), VII-X: AAS 76
(1984), 890-903.
72 Com
sua palavra clara e de grande autoridade, o Concílio
Vaticano I tinha já condenado este erro, ao afirmar, por um
lado, que, « relativamente à fé (...), a Igreja Católica
preconiza que é uma virtude sobrenatural pela qual, sob a
inspiração divina e com a ajuda da graça, acreditamos que
são verdadeiras as coisas por Ele reveladas, não por causa
da verdade intrínseca das coisas percebida pela luz natural
da razão, mas por causa da autoridade do próprio Deus que as
revela, o qual não pode enganar-Se nem enganar » [Const.
dogm. sobre a doutrina católica Dei
Filius, III: DS 3008;
e cân. 3-§ 2: DS 3032].
E, por outro lado, o Concílio declarava que a razão nunca «
chega a ser capaz de penetrar [tais mistérios], nem as
verdades que formam o seu objecto específico » [ibid.,
IV: DS 3016].
Daqui tirava a seguinte conclusão prática: « Os fiéis
cristãos não só não têm o direito de defender, como
legítimas conclusões da ciência, as opiniões reconhecidas
contrárias à doutrina da fé, especialmente quando estão
condenadas pela Igreja, mas são estritamente obrigados a
considerá-las como erros, que apenas têm uma ilusória
aparência de verdade » [ibid.,
IV: DS 3018].
73 Cf.
nn. 9-10.
74 Const.
dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 10.
75 Ibid.,
21.
76 Cf. ibid.,
10.
77 Cf.
Carta enc. Humani
generis (12
de Agosto de 1950): AAS 42
(1950), 565-567.571-573.
78 Cf.
Carta enc. ÆTERNI
PATRIS (4
de Agosto de 1879): ASS 11
(1878-1879), 97-115.
79 Ibid.: o.c.,
109.
80 Cf.
nn. 14-15.
81 Cf. ibid.,
20-21.
82 Ibid.,
22; cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor
hominis (4
de Março de 1979), 8: AAS 71
(1979), 271-272.
83 Decr.
sobre a formação sacerdotal Optatam
totius, 15.
84 Cf.
João Paulo II, Const. ap. Sapientia
christiana (15
de Abril de 1979), arts. 79-80: AAS 71
(1979), 495-496; Exort. ap. pós-sinodal Pastores
dabo vobis (25
de Março de 1992), 52: AAS 84
(1992), 750-751. Vejam-se também algumas reflexões sobre a
filosofia de S. Tomás: Discurso na Pontifícia Universidade
de S. Tomás (17 de Novembro de 1979): L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 1; Discurso aos
participantes no VIII Congresso Tomista Internacional (13 de
Setembro de 1980): L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa de 28 de Setembro de 1980), 4; Discurso aos
participantes no Congresso Internacional da Sociedade S.
Tomás de Aquino sobre « A doutrina tomista da alma » (4 de
Janeiro de 1986): L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa de 12 de Janeiro de 1986), 9. E ainda: S. Congr.
da Educação Católica, Ratio
fundamentalis institutionis sacerdotalis (6
de Janeiro de 1970), 70-75: AAS 62
(1970), 366-368; Decr. Sacra
theologia (20
de Janeiro de 1972): AAS 64
(1972), 583-586.
85 Cf.
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 57.62.
86 Cf. ibid.,
44.
87 Cf.
Bula Apostolici
regimini sollicitudo,
Sessão VIII: Conc.
Rcum. Decreta (1991),
605-606.
88 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 10.
89 S.
Tomás de Aquino, Summa
theologiæ, II-II, 5, 3 ad
2.
90 «
A busca das condições, nas quais o homem faz por si próprio
as primeiras perguntas fundamentais acerca do sentido da
vida, do fim que lhe deseja dar e daquilo que o espera
depois da morte, constitui para a Teologia Fundamental o
preâmbulo necessário, para que, também hoje, a fé possa
mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera da
verdade » [João Paulo II, Carta aos participantes no
Congresso Internacional de Teologia Fundamental por ocasião
do 125o aniversário da promulgação da Const. dogm. « Dei
Filius »
(30 de Setembro de 1995), 4: L'Osservatore
Romano, (ed. portuguesa de 7 de
Outubro de 1995), 10].
91 Ibid.,
4: o.c.,
10.
92 Cf.
Conc. Ecum. Vat.
II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 15; Decr. sobre a actividade missionária da
Igreja Ad
gentes, 22.
93 S.
Tomás de Aquino, De
Cœlo 1,
22.
94 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium
et spes, 53-59.
95 S.
Agostinho, De
prædestinatione Sanctorum 2,
5: PL 44,
963.
96 Idem, De
fide, spe et caritate, 7: CCL 64,
61.
97 Cf.
Conc. Ecum. de Calcedónia, Symbolum,
definitio: DS 302.
98 Cf.
João Paulo II, Carta enc. Redemptor
hominis (4
de Março de 1979), 15: AAS 71
(1979), 286-289.
99 Veja-se,
por exemplo, S. Tomás de Aquino, Summa
theologiæ, I, 16, 1; S.
Boaventura, Coll.
in Hex., 3, 8, 1.
100 Const.
past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 15.
101 Cf.
João Paulo II, Carta enc. Veritatis
splendor (6
de Agosto de 1993), 57-61: AAS 85
(1993), 1179-1182.
102 Cf.
Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, IV: DS 3016.
103 Cf.
Conc. Ecum. Lateranense IV, De
errore abbatis Ioachim, II: DS 806.
104 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 24; Decr. sobre a
formação sacerdotal Optatam
totius, 16.
105 Cf.
João Paulo II, Carta enc. Evangelium
vitæ (25
de Março de 1995), 69: AAS 87
(1995), 481.
106 Neste
mesmo sentido, escrevi na minha primeira encíclica,
comentando a frase « conhecereis a verdade, e a verdade
tornar-vos-á livres » do Evangelho de S. João (8, 32): «
Estas palavras encerram em si uma exigência fundamental e,
ao mesmo tempo, uma advertência: a exigência de uma relação
honesta para com a verdade, como condição de uma autêntica
liberdade; e a advertência, ademais, para que seja evitada
qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e
unilateral, toda a liberdade que não compreenda cabalmente a
verdade sobre o homem e sobre o mundo. Ainda hoje, depois de
dois mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como Aquele
que traz ao homem a liberdade baseada na verdade, como
Aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e
como que despedaça pelas próprias raízes essa liberdade, na
alma do homem, no seu coração e na sua consciência » [Carta
enc. Redemptor
hominis (4
de Março de 1979), 12: AAS 71
(1979), 280-281].
107 Discurso
de abertura do Concílio (11 de Outubro de 1962): AAS 54
(1962), 792.
108 Congr.
da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do
teólogo Donum
veritatis (24
de Maio de 1990), 7-8: AAS 82
(1990), 1552-1553.
109 Escrevi
na encíclica Dominum
et vivificantem, comentando Jo 16,
12-13: « Jesus apresenta o Consolador, o Espírito da
Verdade, como Aquele que "ensinará e recordará", como Aquele
que "dará testemunho" d'Ele; agora diz: "Ele vos guiará para
a verdade total". Este "guiar para a verdade total", em
relação com aquilo que "os Apóstolos por agora não estão em
condições de compreender", está necessariamente em ligação
com o despojamento de Cristo, por meio da sua paixão e morte
de cruz, que então, quando Ele pronunciava estas palavras,
já estava iminente. Mas, em seguida, torna-se bem claro que
aquele "guiar para a verdade total" tem a ver não apenas com
o scandalum
crucis, mas também com tudo
o que Cristo "fez e ensinou" (Act 1,
1). Com efeito, o mysterium
Christi na
sua globalidade exige a fé, porquanto é ela que introduz o
homem oportunamente na realidade do mistério revelado. O
"guiar para a verdade total" realiza-se, pois, na fé e
mediante a fé: é obra do Espírito da verdade e é fruto da
sua acção no homem. O Espírito Santo deve ser em tudo isso o
guia supremo do homem, a luz do espírito humano » [n. 6: AAS 78
(1986), 815-816].
110 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei
Verbum, 13.
111 Cf.
Pontifícia Comissão Bíblica, Instr. sobre a verdade
histórica dos Evangelhos (21 de Abril de 1964): AAS56
(1964), 713.
112 «
É claro que a Igreja não pode estar ligada a qualquer
sistema filosófico efémero; aquelas noções e termos que,
segundo o consenso geral, foram compostos ao longo de vários
séculos pelos doutores católicos para se chegar a um certo
conhecimento e compreensão do dogma, sem dúvida que não se
apoiam sobre fundamento tão caduco. Apoiam-se, ao contrário,
em princípios e noções ditadas por um verdadeiro
conhecimento da criação; e, para deduzirem estes
conhecimentos, a verdade revelada, como se fosse uma
estrela, iluminou a mente humana por meio da Igreja. Por
isso, não há de que maravilhar-se se alguma destas noções
acabou não apenas por ser usada em Concílios Ecuménicos, mas
foi aí de tal modo ratificada que não é lícito abandoná-la »
[Carta enc. Humani
generis (12
de Agosto de 1950): AAS 42
(1950), 566-567; cf. Comissão Teológica Internacional, Doc.Interpretationis
problema (Outubro
de 1989): Enchiridion
Vaticanum, XI, nn.
2717-2811].
113 «
Quanto ao próprio significado das fórmulas dogmáticas, este
permanece, na Igreja, sempre verdadeiro e coerente, mesmo
quando se torna mais claro e melhor compreendido. Por isso,
os fiéis devem rejeitar a opinião segundo a qual as fórmulas
dogmáticas (ou uma parte delas) não podem manifestar
exactamente a verdade, mas apenas aproximações variáveis
que, de certa forma, não passam de deformações e alterações
da mesma » [S. Congr. da Doutrina da Fé, Decl. sobre a
defesa da doutrina católica acerca da Igreja Mysterium
Ecclesiæ (24
de Junho de 1973), 5: AAS 65
(1973), 403].
114 Cf.
Congr. S. Officii, Decr. Lamentabili (3
de Julho de 1907), 26: ASS 40
(1907), 473.
115 Cf.
João Paulo II, Discurso na Pontifícia Universidade de S.
Tomás (17 de Novembro de 1979), 6:L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 8.
116 N.
32: AAS 85
(1993), 1159-1160.
117 Cf.
João Paulo II, Exort. ap. Catechesi
tradendæ (16
de Outubro de 1979), 30: AAS 71
(1979), 1302-1303; Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a
vocação eclesial do teólogo Donum
veritatis (24
de Maio de 1990), 7:AAS 82
(1990), 1552-1553.
118 Cf.
João Paulo II, Exort. ap. Catechesi
tradendæ (16
de Outubro de 1979), 30: AAS 71
(1979), 1302-1303.
119 Cf. ibid.,
22: o.c.,
1295-1296.
120 Cf. ibid.,
7: o.c.,
1282.
121 Cf. ibid.,
59: o.c.,
1325.
122 Conc.
Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, IV: DS 3019.
123 «
Ninguém pode tratar a teologia como se fosse uma simples
colectânea dos próprios conceitos pessoais; mas cada um deve
ter a consciência de permanecer em íntima união com aquela
missão de ensinar a verdade, de que é responsável a Igreja »
[João Paulo II, Carta enc. Redemptor
hominis (4
de Março de 1979), 19: AAS 71
(1979), 308].
124 Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis
humanæ, 1-3.
125 Cf.
Exort. ap. Evangelii
nuntiandi (8
de Dezembro de 1975), 20: AAS 68
(1976), 18-19.
126 Const.
past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 92.
127 Cf. ibid.,
10.
128 Prólogo,
4: Opera
omnia, t. V (Florença
1891), 296.
129 Cf.
Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam
totius, 15.
130 Cf.
João Paulo II, Const. ap. Sapientia
christiana (15
de Abril de 1979), arts. 67-68: AAS 71
(1979), 491-492.
131 João
Paulo II, Discurso na Universidade de Cracóvia, por ocasião
dos 600 anos da Alma Mater Jaghelónica (8 de Junho de 1997),
4: L'Osservatore
Romano (ed.
portuguesa de 21 de Junho de 1997), 6.
132 «
'e noerà tes pìsteos tràpeza » [Pseudo-Epifânio, Homilia
em louvor de Santa Maria Mãe de Deus: PG 43,
493] .
www.obradoespiritosanto.com
|